Em determinado momento do longa-metragem A Superfície da Sombra, dirigido por Paulo Nascimento, o protagonista Tony, vivido por Leonardo Machado, pergunta à jovem a quem está dando uma carona pelos campos do Chuí se eles estão no Brasil ou no Uruguai. A garota responde com outra pergunta: "E isso importa?". É uma cena breve que encapsula o sentido geral do filme, um suspense onírico com mais dúvidas do que resoluções, situado no território impreciso de uma fronteira multilíngue.
A Superfície da Sombra, em cartaz a partir de hoje nos cinemas, adapta o livro de mesmo nome publicado pelo escritor gaúcho Tailor Diniz em 2012. Na trama, Antônio (Leonardo Machado), um homem de meia-idade da cidade grande, viaja a Poblado Oriental, uma cidade no lado uruguaio da fronteira, separada por apenas uma rua do município brasileiro de Passo do Cati. Antônio – que no livro é um escritor e no filme é um produtor musical, com direito a um casaco de couro de cobra saído direto dos anos 1980 –, foi chamado à Fronteira para visitar uma antiga paixão, Adele, no seu leito de morte, mas chegou tarde, informa a jovem e bela Blanca Lucía (Giovana Echeverría), filha de Adele.
Tony então vai ao funeral da amiga, passeia pela cidade, dá uma carona a Blanca para buscar umas encomendas, e a cada passo topa com personagens cujo comportamento vai do bizarro ao ameaçador. Do homem que é coveiro de dia e cantor de tangos à noite (grande participação do uruguaio Cesar Troncoso), ao vendedor de facas (Sirmar Antunes), passando pelos integrantes de um circo de passagem. Como Tony alterna entre conhecer a cidade e dormir por longos períodos fora de hora, a atmosfera geral é de uma certa indistinção entre o sono e a vigília, e a cidade fictícia de fronteira de repente parece um único personagem tramando algo sinistro.
– De um ponto de vista narrativo, as cidades pequenas são ambientes maravilhosos para os dramas. Porque elas vivem numa aparente normalidade mas escondem segredos que se podem revelar ao longo da história – diz o diretor do filme, Paulo Nascimento.
Situado num território de fronteira, o filme faz Tony se movimentar por barreiras pouco nítidas entre a sanidade e a loucura (mesmo confrontado com situações suspeitas, sua curiosidade pelos mistérios do lugar é maior) e entre idiomas. Reproduzindo o que é cotidiano nas cidades da fronteira do Cone Sul, os personagens ora alternam, ora misturam português e espanhol.
– Gosto muito do ambiente de fronteira e de deserto, acho que fronteiras são parecidas em todo o lugar, o povo tem um tipo de mentalidade específica. E o caminho foi traçado já pelo livro do Tailor, porque, em um clima de realismo fantástico, ele criou uma metáfora sobre como ficamos em dúvida sobre qual lado da fronteira estamos – afirma Nascimento.
Autor da novela original, Diniz acompanhou aos poucos os vários tratamentos de roteiro e o processo de edição. Ele devolve os elogios e é um entusiasta do resultado final:
– O Paulo conseguiu manter um clima de suspense, mas sonegando o desfecho. Ele vai sobrepondo cenas, como se estivesse para acontecer algo a qualquer momento, e não acontece. Ele criou muito bem esse anticlímax de suspense que é o tom do livro.
A Superfície da Sombra foi filmado em duas semanas em junho de 2015 – período escolhido para acomodar as férias em Hollywood do diretor de fotografia Renato Falcão (das animações Rio e O Touro Ferdinando), que veio para o Rio Grande do Sul filmar com a equipe. É a terceira produção dirigida por Nascimento com data de estreia marcada para 2018. No início do mês, chegou aos cinemas Teu Mundo não Cabe nos Meus Olhos, drama estrelado por Edson Celulari e pela argentina Soledad Villamil. Até o fim do ano, deve ir ao ar no canal por assinatura Prime Box Brazil a série sobre futebol Chuteira Preta, com cenas gravadas em Porto Alegre, Eldorado do Sul e Guaíba.
– Foi coincidência. Os filmes eram projetos previstos para estrearem faz mais de ano – brinca o diretor.