O escritor americano Bill Clegg tinha uma vida sensacional. Saído de uma cidade minúscula em Connecticut usada principalmente como estação de veraneio para a elite endinheirada de Manhattan, ele havia se alçado profissionalmente um bem sucedido agente literário na competitiva Nova York. Só que ele escondia um segredo que logo não era mais segredo algum e que logo o exilou completamente dessa vida sensacional ao ponto de que a única sensação possível era um gigantesco desespero: Clegg era um viciado em crack, torrou milhões com a droga, rompeu com a sócia na agência que havia fundado. Quando percebeu, estava desempregado, pesava quarenta e cinco quilos e havia perdido ou rompido contato com todos à sua volta. É esta a dilacerante experiência que Clegg narra em seu livro Retrato de um viciado quando jovem, publicado em 2011, uma obra na qual detalha minuciosamente sua descida ao vício.
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- Certa vez, a escritora de memórias Mary Carr deu um conselho ao também escritor Nick Flynn quando ele estava escrevendo as suas, e ele o repassou a mim: aquilo que você mais imagina ser vergonhoso, embaraçoso e terrível que as pessoas saibam sobre você, é exatamente sobre isso que você deve se debruçar e trabalhar duro – disse o autor em entrevista coletiva na tarde de ontem na Festa Literária Internacional de Paraty, explicando por que não teve medo da exposição que um relato tão cru de sua experiência provocaria.
Clegg está agora em Paraty para falar de seu terceiro livro, um romance chamado Você já teve uma família? Na noite de quinta-feira, participou da última mesa da programação diária, uma conversa com o escocês Irvine Welsh mediada por Daniel Pellizzari, um papo que tratou menos de loucura e drogas do que seria de esperar dado o currículo dos dois convidados – Welsh é o autor dos transgressores Pornô e Trainspotting. Clegg partilhou na mesa um pouco do processo que o levou das memórias ao romance.
- Eu abri um arquivo e comecei a escrever tudo o que eu me lembrava da cidade em que havia nascido, o tempo que havia passado lá, e escrevi muito. Depois percebi que não iria usar nada daquilo, porque as memórias cobriam mesmo o período posterior, do vício e da recuperação. Depois que havia publicado as memórias, abri aquele arquivo e comecei a brincar com ele para ver o que sairia. Nem pretendia escrever um romance, apenas brincar com aquele material, disse na Tenda dos Autores.
Estreia de Clegg na ficção, o romance, de acordo com ele, guarda alguns paralelos com as iexperiências de vício e recuperação narradas em Retrato e em seu segundo livro, Noventa Dias. No romance, um acidente mata de uma única vez quase toda uma família, e a única sobrevivente precisa lidar com a falta dos que se foram. De acordo com ele, a ligação entre os trabalhos de ficção e de não ficção está na forma como lida com uma mudança repentina.
- Antes de abandonar a minha vida, nunca pensei que seria um viciado em crack. A maneira repentina como me dei conta de que havia sido exilado da minha própria vida, das minhas relações, é algo que também acontece com a personagem do romance.
Outro ponto que o interessou, também, foi abordar um certo choque social em uma cidade parecida com a que cresceu (Sharon, em Connecticut), um lugar de muita uniformidade étnica mas de um forte conflito de classes entre os habitantes que moram na cidade a semana inteira e vivem trabalhando na estrutura que serve aos nova-iorquinos de férias.
- Eu era jardineiro lá e cortava grama, aparava canteiros, nas casas dos ricos de Manhattan que passavam lá o fim de semana, e quando os via entrando nos seus carrões para voltar, sentia ressentimento. Isso é algo muito frequente lá. Uma dessas casas terminou sendo incendiada, e nunca se descobriu quem foi, mas todo mundo suspeitava de um cara que foi demitido pelo dono. Logo, lidar com esse tipo de choque de classes foi algo que me interessou no romance – diz.