Passadas cinco décadas, ainda lembro: dos chuviscos da televisão jurássica e dos acordes envenenados das guitarras; da calça calhambeque, que eu e meus colegas do Farroupilha usávamos como uniforme; do primeiro disco que comprei na vida, um LP do Renato e Seus Blue Caps; do Sérgio Reis dentro de um terno de lamê cintilante cantando Coração de Papel e do Wanderley Cardoso com pinta de galã.
Sabia todas as letras de cor, adorava Coruja, do Deni e Dino. Devo àquelas canções minha felicidade pré-adolescente. Dizem que o nome do programa foi inspirado em uma máxima leninista: "O futuro do socialismo repousa nos ombros da jovem guarda". Certo é que aquelas tardes de domingo nortearam minha vida. O programa fez aniversário: exatos 50 anos. Não há aplausos nem elogios suficientes para comemorar. Lênin e Roberto Carlos. Jovem Guarda.
Geleia geral, ampliei o leque tropicalista dos meus gostares musicais: jazz, fado e flamenco. Elis, Bethânia, Joni Mitchell, Nina Simone e Estrella Morente estão acima do bem e do mal no meu panteão sonoro. Filha de Enrique Morente, Estrella herdou do pai o DNA do duende reverenciado por Lorca. Gravou poucos discos, todos extraordinários. Acompanhada só com a guitarra seminal de Niño Josele, dedica agora um CD inteiro à música brasileira e crava novidades e frescor em canções conhecidas desde sempre. Sagrado e profano, nem exatamente flamenco nem tipicamente brasileiro, jazzístico da primeira à última faixa, Amar en Paz é um dos mais notáveis discos dos últimos anos.
Estrella veio ao Brasil uma única vez, para se apresentar no Porto Alegre Em Cena. Quem viu sua apresentação jamais a esquecerá. Inesquecível também deve ser a apresentação de Meredith Monk, que abre hoje à noite a 22ª edição do festival. Uma das artistas mais cultuadas da atualidade, a americana é dessas atrações que justificam a excelência provocadora do Em Cena, afinal "um coração ardente não dispensa uma cabeça pensante".
Contra a barbárie: Porto Alegre em Cena.