A chegada de Nó na Orelha (2011) foi como uma voadora na música pop brasileira: o segundo disco do rapper paulistano Criolo surpreendeu com sua mistura criativa do hip hop e do rap com ritmos como afrobeat, reggae, afoxé e samba. O cantor e compositor de 39 anos recebeu a bênção de Chico Buarque para sua versão rapeada de Cálice - adotada pelo mestre em seus shows. A expectativa, portanto, era grande a respeito do passo seguinte de Kleber Cavalcante Gomes - que já foi chamado de Criolo Doido. Pois o lançamento de Convoque Seu Buda (Universal, 10 faixas, R$ 17, em média) comprova o talento musical e a pertinência crítica de um dos mais instigantes artistas brasileiros surgidos recentemente.
Ouça na íntegra abaixo:
Criolo vem a Porto Alegre mostrar seu novo CD, apresentando-se com banda nesta quinta-feira, no Pepsi On Stage. O trabalho tem produção de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, dupla responsável também pela sonoridade do disco anterior de Criolo. Em Convoque Seu Buda, a metralhadora giratória aponta novamente para as injustiças sociais. A verve de Criolo, no entanto, transcende o panfletarismo didático e surge como uma cornucópia de imagens inspiradas e viscerais cuja inventividade dificilmente encontra paralelo no rap nacional.
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A faixa-título já começa problematizando a situação, lembrando os recentes protestos que sacudiram o país: "Uns cara que cola pra ver se cata mina / Umas mina que cola e atrapalha ativista / Mudar o mundo do sofá da sala, postar no Insta / E se a maconha for da boa que se foda a ideologia". A lucidez segue na seguinte Esquiva da Esgrima, com versos como "AR-15 é mato e os muleque tão de fuzil".
A ironia vem com o funk-rap-ostentação Cartão de Visita, que tem participação da cantora Tulipa Ruiz: "Menino no farol cê humilha e detesta / Acha que tá bom, né não, nem te afeta / Parcela no cartão essa gente indigesta / Nem tudo que brilha é relíquia, nem joia". Criolo mergulha no samba em Fermento pra Massa ("Hoje eu vou comer pão murcho / Padeiro não foi trabalhar / A cidade tá toda travada / É greve de busão, tô de papo pro ar") e parece voltar aos tempos dos festivais com Pegue pra Ela, híbrido de canção de protesto com Novos Baianos ('Toda indústria tem no comércio / Seu ponto de reprodução").
O bonde do Criolo está rumando para o futuro - e Convoque Seu Buda é um disco fundamental para quem não quiser perder o busão da história.
ENTREVISTA
Como foi o processo de gravação de Convoque Seu Buda?
A gente foi fazendo o disco assim, juntando canções que já tínhamos, compondo outras na hora. Ficamos gravando de julho a setembro. Foi uma coisa muito intensa, uma entrega total com os produtores Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral. Percebemos que tínhamos uma sonoridade nossa, construída na estrada. Todos os músicos participaram também da construção da sonoridade do álbum, muito mais presente do que no Nó na Orelha.
De que maneira as manifestações de junho de 2013 e a situação atual da sociedade influenciaram seu trabalho?
A realidade brasileira afeta a todos nós desde o nascimento. Podemos perceber que as gerações recentes, a anterior, a nossa e a que está chegando, estão preocupadas com uma sociedade melhor para todos. E isso é tocante. O que vai ficar para a história daquelas manifestações é o fato de se colocar, de dizer: "Eu existo". É uma constatação de que sabemos de algumas coisas, outras não, e nos colocamos em uma situação de diálogo. Sem diálogo não haverá crescimento.
Você se sentiu pressionado a repetir o sucesso de Nó na Orelha?
Só o fato de saber que as pessoas estão escutando as canções já é um presente para mim. Partindo do princípio de que Nó na Orelha não deveria ser um disco, apenas a reunião de músicas que eu fiz para escutar com a minha família, e aconteceu tudo o que aconteceu, eu não tenho coragem de esperar mais nada na minha vida! Não consigo me concentrar em fazer sucesso.
As letras de Convoque Seu Buda soam como um jorro de imagens poéticas e contundentes. Você demora muito tempo para escrever as canções?
Sai em uma pancada só, cara. Parece que você está morrendo, é uma coisa muito séria, muito louca. Uma coisa ou outra eu revisito, mas 80% é uma pedrada só. É uma energia que te toma, é duro porque é a nossa realidade. Somos um país de paradoxos, temos que conviver com a beleza que o ser humano produz e a desgraça que o ser humano oferece. É duro, cara...