O ator João Carlos Castanha nunca pareceu tão realizado quanto na cena derradeira da peça Até o Fim, em que dubla o bolero Puro Teatro, da cantora cubana La Lupe - que ficou célebre nos anos 1960 e foi lembrada por Almodóvar na trilha do filme Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988). Resumo da trajetória do ator, performer da noite e figura folclórica da cidade, o espetáculo esteve em cartaz no Teatro do Museu do Trabalho, em Porto Alegre.
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Até o Fim é, antes de tudo, um testemunho autobiográfico: Castanha assina o roteiro. Quando fala em cena, nunca sabemos quando é o personagem e quando é o ser humano, mas aí é que está a graça. Afinal, não é a própria vida puro teatro?
A trama acompanha um doente terminal internado em um hospital - provavelmente soropositivo, segundo os diálogos sugerem - que tenta conquistar, com um humor ríspido, a amizade da sisuda enfermeira, interpretada por Rose Canal. A ela, relata experiências sexuais, comenta filmes e livros, reflete sobre a vida e, não menos importante, recomenda que seja mais vaidosa.
Castanha - o da ficção ou o da realidade? - não poupa ninguém, nem a si mesmo. Seu discurso é cru, e suas opiniões, lancinantes ("Tu vai mesmo querer esta vida de merda pra sempre?", questiona à enfermeira). Alguns momentos são verdadeiramente engraçados ("Olha, fiquei igual à Bibi Ferreira", diz, após se maquiar para passear no jardim do hospital). De tudo, fica na memória sobretudo a bonita cena do aquário, em que a metáfora se sobrepõe ao realismo. Na direção, Zé Adão Barbosa parece optar um trabalho transparente, no sentido de deixar Castanha livre para ser ele mesmo ou quem ele quiser ser.
Esse testemunho íntimo e pessoal, que é corajosamente sincero, não evita que a dramaturgia seja erigida sobre um déjà-vu - a conhecida situação do doente rebelde que conquista a enfermeira/cuidadora durona, tornando-se grandes parceiros, em um desenvolvimento previsível. Embora talentosos, Castanha e Rose estão em papéis que poderiam voar mais alto, valendo-se de nuanças e afastando-se de estereótipos. Fiquei com a impressão de que o texto poderia ir mais fundo ao revelar a complexa vivência de Castanha.
A iluminação de Ricardo Vivian pontua bem as transições entre a assepsia do ambiente hospitalar e a pulsação da boate gay que aparece em flashback, sabendo se colocar a serviço do espetáculo. Já a cenografia de Rodrigo Lopes é modesta, composta por poucos elementos, com um fundo branco que não chega a ocupar a totalidade do palco (configurando um certo descuido), mas cresce quando a cortina translúcida que separa a cena do público recebe as projeções de Daniel Jainechine.
Cena gaúcha
Opinião: "Até o Fim" é testemunho autobiográfico do ator e performer João Carlos Castanha
Espetáculo esteve em cartaz no Teatro do Museu do Trabalho, em Porto Alegre
Fábio Prikladnicki
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