Alain Resnais foi o cineasta que mais apelou para os compositores eruditos - e foi respondido por eles. Esta foi minha conclusão ao escrever Ilha Cheia de Sons: Vanguardas Musicais e Cinema, capítulo do livro Cinema em Choque que Carlos Gerbase e Cristiane Freitas Gutfreind publicaram no final do ano passado. O que eu não disse então, mas digo agora, é que Resnais sempre foi um dos meus diretores preferidos, mesmo que eu venha deixando o cinema cada vez mais longe na minha lista de preferências. Uma das razões para a predileção vem exatamente do fato de ver o nome de compositores eruditos nos créditos dos seus filmes. Não como efeito de uma trilha pesquisada em CDs, LPs e gravações da antiga, mas como resultado de uma parceria verdadeira.
No momento mesmo em que os compositores iam despontando como líderes dos seus campos, Resnais os chamava para trabalhar com ele. Com Hans Werner Henze foi até mais do que isso: assim que Resnais pressentiu que ali estava um compositor pós-vanguarda com um pé no romantismo tardio do século passado, então achou que era bem necessário chamá-lo para uma trilha sonora. Foi assim que aconteceu a música para Muriel, nas lonjuras de 1963. O roteirista do filme, Jean Cayrol, afirma que Muriel se passa numa cidade sonora como uma concha vazia, "sem ruídos abafados a não ser alguns sussurros".
Hans Werner Henze, que foi um compositor cheio de ideias, esqueceu os sussurros e foi logo compondo uma cantata cantada a plenos pulmões por uma soprano wagneriana nos vários momentos de Muriel que Resnais julgou bons para que tivessem música. Não dá para entender uma palavra do texto, mas é assim mesmo. Pois às vezes não dá para entender um filme de Resnais - quanto mais o texto da música! Lembro até de um gráfico feito décadas atrás pelo intelectualíssimo Cahiers de Cinema para explicar ao leitor como ele deveria entender O Ano Passado em Marienbad, talvez o filme hermético mais célebre do cinema. Não era possível entender nem o gráfico e nem o filme e, de qualquer maneira, já se foi o tempo desses hermetismos., embalados, no caso, pela música de Francis Seyrig.
Resnais chamou Henze novamente, anos depois, em Morrer de Amor. Desta vez, o próprio Henze achou a música tão boa que a integrou ao seu catálogo de obras. Sim, lá está a Sonata Para um Filme de Resnais (ou, às vezes, Sonata para Seis Músicos), solidificando a parceria numa música que é tanto trilha sonora como peça autônoma de concerto. Já o polonês Krzysztof Penderecki não incluiu no seu catálogo a música que fez para Eu Te Amo, Eu Te Amo, um dos filmes "menores" de Resnais, no entender da crítica. Como não sou do ramo, adoro esse filme que se pode ver no YouTube, mas que eu assisti bem ali no Bristol, aquele pulgueiro da Osvaldo Aranha que então era o auge da vanguarda cinéfila em Porto Alegre.
Ter chamado Henze e Penderecki para trabalhar com ele já bastaria para colocar Resnais como animal raro nesta coisa de reconhecer músicos nas suas respectivas vanguardas e achar que, de alguma maneira, os sons que compunham casariam com as imagens, com o roteiro, com as ideias fílmicas. No entanto, Resnais fez mais. No momento em que Stephen Sondheim era o líder do teatro musical da Broadway - isso foi lá nos anos 1970 - Resnais chamou-o para musicar Stavisky, outro filme "menor", mas que tem um Charles Boyer inesquecível no elenco. Vendo o filme hoje - e como envelheceu! - há um evidente ruído entre imagem e música. Naquele tempo, talvez fosse essa mesmo a ideia do cineasta, esse descompasso. Pois, como diz o próprio Sondheim, "para Resnais, a música de Stavisky é uma ponte em direção ao público" e talvez o público necessitasse a ajudinha de uma música mais palatável.
Existe um CD, Alain Resnais - Portrait Musical ("Alain Resnais - Retrato musical"), que recolhe trechos de todas as trilhas até Medos Privados em Lugares Públicos, de 2006. Ficaram de fora as trilhas dos filmes mais recentes, que são a prova do florescimento temporão desse cineasta que não parou de criar um minuto desde o emblemático Hiroshima, Meu Amor, de 1959, que embalou as alucinações cinematográficas da geração anterior à minha.
Nesse CD está a "Valsa do Crepúsculo" de Providence, uma miniatura com a qual Miklós Rosza desceu de seu pedestal de criador de trilhas para filmes bombásticos (tipo Ben-Hur...) para criar uma miniatura que é, precisamente, crepuscular. Também está ali a parceria com Mark Snow e com Bruno Fontaine e até Giovanni Fusco, compositor da idade de ouro do cinema italiano, comparece. Ou seja: vendo Alain Resnais e ouvindo Alain Resnais, logo se chega à conclusão de que são poucos os cineastas que, numa carreira longa e entre filmes "maiores" e filmes "menores", possa ser... bem, possa ser tanto visto quanto ouvido.