Na recente leva de documentários brasileiros em primeira pessoa, cada um emocionante e dolorido à sua maneira, Mataram Meu Irmão se destaca não apenas por sua potência dramática e pelo impacto da história. O que o diretor Cristiano Burlan fez vai além do registro pessoal de uma jornada marcada pela tragédia. Seu filme diz muito sobre o Brasil contemporâneo.
Filme vencedor da categoria melhor documentário nacional do festival É Tudo Verdade 2013, Mataram Meu Irmão terá nesta terça, às 20h, na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro, sua primeira exibição no Estado, com a presença do diretor para conversar com o público. A exibição, com entrada franca, integra a mostra Aquecendo o Democracine - Mostra Latinidades.
Mataram Meu Irmão se impõe diante do espectador da primeira à última imagem. Inicia com a voz de Cristiano buscando em um telefonema informações sobre o destino dos restos mortais do irmão Rafael, assassinado em 2001 com sete tiros. Termina com fotos do inquérito policial expondo o corpo do rapaz de 22 anos crivado de balas, em uma sarjeta do Capão Redondo, um dos bairros mais violentos da cidade de São Paulo.
O destino de Rafael foi o mesmo de muitos amigos da família Burlan, que deixou Porto Alegre em janeiro de 1985, após a separação dos pais dos rapazes. Cristiano tinha então nove anos. O casal voltou a se unir em São Paulo, onde o diretor começou a trilhar o caminho que o deixaria de fora da ciranda de desgraças que marcaria sua família. Rafael viciou-se em crack e começou a cometer furtos - foi por desavenças no destino de um carro roubado que os comparsas o mataram. O pai, Vânio, era alcóolatra. Em um dia de torpor, caiu, bateu com a cabeça no meio-fio e morreu. Tinha 50 anos. Dois outros irmãos de Cristiano seguiram o caminho do crime: Tiago cumpre pena em Cuiabá por assalto a mão armada, e Ricardo já esteve preso e hoje vive em lugar incerto. Em 2011, a mãe, Isabel, foi morta pelo novo companheiro.
- Não uso o clichê de dizer que fui salvo pela arte - afirma Cristiano. - Vivi a mesma realidade dos meus irmãos. Sempre gostei muito de ler e de cinema. Quando morávamos em Porto Alegre, no bairro Sarandi, eu ia muito ao cinema com minha mãe.
Cristiano agarrou-se em todas as oportunidades que surgiram para cursar oficinas e cursos de artes. Conseguiu uma bolsa na Academia Internacional de Cinema, em Curitiba, juntou dinheiro para complementar estudos na Espanha e hoje é professor da Academia em São Paulo. Mataram Meu Irmão é seu 13º filme, o quinto longa. No documentário Construção (2007), contou a história do pai. Com a tragédia da mãe, projeto que ele diz juntar forças para levar adiante, pretende encerrar sua Trilogia do Luto.
- Cada vez que vejo essa comemoração ufanista sobre índices sociais no Brasil, lembro que pouco mudou desde que meu irmão foi assassinado. Não fiz esse filme para tentar curar uma dor. É um filme sobre muitos outros filhos e irmãos de outras famílias.
A história de Rafael é contada por pessoas que com ele conviveram. Cristino deixa a câmera ligada e escuta as histórias com intervenções mínimas. Um dos depoimentos, por exemplo, de Tiago, amigo de infância, dura 25 minutos e sintetiza o painel tanto da família desestruturada quanto da realidade de quem vive em uma região marcada pela pobreza e pela ausência do poder público.
- Estudei cinema, mas sempre quis aprender na prática. Depurei muito a maneira de como iria realizar esse filme. Queria pouca edição. Deixei os entrevistados falarem, com incongruências e momentos banais, até surgir aquela fala catártica. Consegui manter um distanciamento, menos quando reencontrei meus sobrinhos, filhos do Rafael. Ali não consegui me controlar. O garoto é a cara dele. Não tive coragem ainda de mostrar o filme para eles.