Foi a última vez que a poesia moderna teve uma recepção pública tão vasta, tão ardorosa e tão marcadamente juvenil. Entre a segunda metade dos anos 1950 e o fim dos 1970, isto é, entre a construção do "sonho brasileiro" e o início da derrocada do milagre econômico, milhares de jovens sentiram-se tocados por aqueles versos acessíveis e candentes, que pareciam expressar em dimensão subjetiva o grande terremoto histórico e moral que abalava o país e modificava padrões de existência até então considerados imutáveis.
Como raros poetas do século 20, Vinícius de Moraes soube captar o espírito de seu tempo e traduzi-lo com simplicidade e emoção, mas antes disso, precisou se livrar da pesada carga religiosa, de substrato conservador, dominante nos livros inaugurais. Neles, as conotações místicas, a procura da transcendência e o confronto entre as solicitações da alma e o imperativo da carne apareciam envoltos em uma linguagem solene, rebuscada e de gosto arcaico. Os versos longos, à maneira dos versículos bíblicos, sublinhavam a artificialidade de sua angústia, muito distante dos pungentes dilaceramentos dos autores maneiristas, barrocos e simbolistas católicos. Ele próprio percebeu a dimensão retórica do fervor que professava e a falsidade do EU retorcido que simulava, e, a partir de 1943, com Cinco Elegias, iniciou, conforme suas palavras, "os movimentos e aproximação do mundo material, com a difícil mas consciente repulsa ao idealismo dos primeiros anos."
O vínculo com a tradição metafísica/religiosa permitira-lhe passar ao largo de duas poéticas nucleares na lírica contemporânea: a surrealista e a da rarefação verbal. A primeira, centrada na exploração do inconsciente, no jorro tumultuoso de imagens e nas longas enumerações, tendia à proliferação metafórica e ao excesso. A segunda, contida, despojada, querendo livrar-se das "impurezas" da realidade concreta, tendia à tematização do próprio poema ou ao silêncio. Ambas as poéticas afastaram o público médio - que pelo menos até o século 19 considerava a lírica como uma forma superior de execução literária - e acabaram sendo fruídas tão somente por pequenos núcleos acadêmicos, seduzidos pela possibilidade de decifrá-las e enquadrá-las em um discurso lógico.
Contornando-as, ao mesmo tempo em que rejeitava o artificialismo de suas primeiras composições, Vinícius pôde contemplar a essência mais pura e fulgurante da poesia lírica, um sintético artefato de linguagem capaz de cantar a vida em sua dupla natureza, a subjetiva e a social, com ênfase no registro da natureza, do amor, da amizade e do sexo. Paralelamente, seus poemas nunca deixaram de interrogar o sentido da existência e, sobremodo, o absurdo da morte. Só que em vez do discurso abstrato das obras iniciais, tratou de impregnar a escrita com as referências objetivas do universo circundante, convertendo-a em instrumento (mais sensorial do que racional) de descoberta do mundo. Por esse caminho, aproximou-a das circunstâncias existenciais de seus futuros leitores.
Sobre o amor
A lenta aprendizagem do real deu-se através de um motivo que animou parte importante de sua obra: o heterogêneo campo da vida afetiva. Ao rejeitar a velha dicotomia cristã entre corpo e alma, terminou por fundir as antíteses em uma única camada, indissolúvel e soberana, tornando-se o principal intérprete da modernidade amorosa brasileira. Sua evolução literária e psicológica corresponde aos câmbios que começavam a ocorrer no país: o fim dos valores patriarcais nas relações decorrentes do enamoramento, a destruição da culpa em torno das instâncias corpóreas e sexuais, a quebra do mito da eternidade dos sentimentos ("....que seja infinito enquanto dure."), e o direito dos indivíduos em administrar sua felicidade pessoal sem as injunções de códigos morais coercitivos.
Como nenhum outro escritor do período, Vinícius soube fixar o novo e o audacioso no âmbito das paixões que geralmente afloram na juventude, estabelecendo um horizonte erótico original em que a louvação dos sentidos não implicava na dissolução da ternura e do companheirismo. Perto de alguns poemas obscenos (e frequentemente perversos) de Carlos Drummond, os versos de Vinícius (em especial os sonetos) são quase castos, mas naqueles anos 50 e 60 deflagravam verdadeiras epifanias na mocidade, a tal ponto que andávamos com cópias dos mesmos nos bolsos das japonas ou dos uniformes colegiais, e era de bom-tom oferecê-los, como prova de amizade e carinho, às gentis senhoritas, não apenas para que se comovessem, mas para que se educassem nos segredos da nova sentimentalidade. Porque Vinícius foi, antes de tudo, um professor pronto a oferecer a seus alunos as prodigiosas perspectivas de amores ignorados ou reprimidos. Seu papel foi homólogo ao de Pablo Neruda que, com Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, formou afetivamente várias gerações de colegiais e universitários hispano-americanos. Esses dois mestres nos diziam que os impulsos da sensualidade eram naturais, mas que deviam ultrapassar o puro frêmito do sangue e ascender a outra esfera, onde vive e reina a bem amwada, pois apenas em companhia da mulher sublime o homem pode enfrentar o medo da passagem do tempo, da solidão e da morte. Uma pedagogia não isenta de certa ingenuidade, mas que arte de maravilhas se comparada à pornografia kitsch e reles do funk, que hoje instrui sexualmente a garotada da nação.
Um balanço
Ainda que questionados aqui e ali, os sonetos de Vinícius sobrevivem porque limitam, por meio da rigidez métrica e do número obrigatório de versos, a copiosa vocação verbal do autor e porque apontam para a perfeita junção da estrutura fechada, à moda do passado, com a mensagem renovadora, libertária e de alta voltagem lírica, que remete o texto para um presente contínuo. O Soneto da Fidelidade e O Soneto da Devoção são exemplos dessa mescla fecunda.
Outros poemas comprometidos com o cotidiano merecem ser (re)lidos como Balada do Mangue, O Dia da Criação, Elegia Desesperada. O contexto familiar é evocado em uma obra-prima de grande apelo emocional Elegia na Morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes. Algumas de suas criações, a exemplo de Balada do Cavalão e Balada das Meninas de Bicicleta, entre outras, antecipam a graça espirituosa e a plena alegria de viver que se tornariam marcas das letras que, mais tarde, ele produziria na moldura da Bossa Nova.
Esses poemas e as futuras canções ajudaram a montar, ainda que por poucos anos, uma imagem elogiosa e idílica do homem brasileiro. Durante o governo JK, o desenvolvimentismo, a industrialização acelerada, a construção de Brasília, a emergência de notáveis talentos em todos os setores artísticos, o campeonato mundial de futebol e a crença na chegada imediata de um porvir radioso forjaram uma utopia nacional, que congraçou a maioria da população e cujos traços antropológicos dominantes eram a euforia, a cordialidade e um ideologia nacionalista superficial e benigna; Vinicius foi o porta-voz literário desse tempo de delicadeza e de invenção.
Como sabemos, o perecimento de uma sociedade que oscilava entre o real e o sonho, o concreto e o imaginário, foi decretado inexoravelmente na década de 60, mas muitas das obras do autor de A Rosa de Hiroxima sobreviveram ao cataclismo avassalador e erguem-se ainda hoje sobre a planície vazia do contemporâneo como fulgentes emanações do que poderíamos ter sido e não fomos.