Se há um tema que posso considerar central na minha vida acadêmica, que sintetize o que tento fazer já há três décadas, ele se chama História da Literatura. Ando em volta dele sempre, de um jeito ou de outro, mesmo quando faço estudos específicos sobre um autor ou um problema, quando oriento trabalhos, quando penso em ensino, quando discuto canção como parte do patrimônio letrado. Nisso posso me pensar como pertencente a uma tradição muito digna, aqui no Estado. O primeiro catedrático de Literatura Brasileira na UFRGS foi Guilhermino César, autor de uma importante História da Literatura do Rio Grande do Sul, para nem falar de outros estudos. Dele cheguei a ser aluno, mas fui mais aluno de outros alunos dele, como Flávio Loureiro Chaves, José H. Dacanal e Sergius Gonzaga, todos de algum modo também envolvidos com a discussão historiográfica da literatura, seja a gaúcha, a brasileira ou a latino-americana.
Só que não tem nada de óbvio falar em História da Literatura hoje em dia, bem ao contrário do que já ocorreu. Desde que se inventou esse campo particular de trabalho historiográfico, uns 200 e tantos anos atrás, até uma geração atrás, pareceu óbvio que a literatura merecia figurar no centro de um esforço descritivo, numa história no sentido de uma narrativa contínua. No Novo Mundo, Brasil por exemplo, assim que se armaram as independências essa tarefa ganhou conteúdos particulares: escrever uma história da literatura contribuía, claramente e com muita força, para definir o que era o novo país e quem eram os escritores que haviam recolhido elementos da vida nacional para dentro de seus livros, os quais, por sua vez, deveriam ser lidos pelos jovens na escola, em preparação das novas gerações para continuarem a tarefa de fazer o país.
Com variações de estilo, ênfase, método, desde então foram escritas várias histórias de literatura. No final do século 19, com a voga naturalista ancorada em Darwin, Spencer e Taine, toda uma nova visão se estabeleceu, por exemplo incorporando ao patrimônio da literatura a tradição oral, que era no fim das contas a voz do povo, como ocorreu na obra confusa mas palpitante de Silvio Romero. Entre 1920 e 1940, uma nova geração de historiadores entrou em cena, agora para rever tudo desde o ponto de vista modernista, que colocava a atitude vanguardista, renovadora de formas, num posto hierárquico elevado, ao lado da busca pela alma da (suposta) verdadeira nação brasileira. Com essa nova geração, ganharam espaço e dignidade histórica autores, estilos e obras que antes não passariam da porta de acesso ao cânone.
A última
De certa forma, esse impulso modernista, renovado e com algumas novidades, ainda estava presente na mais recente história da literatura brasileira escrita a partir da universidade, a famosa (mas hoje amplamente superada) História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, publicada pela primeira vez no começo dos anos 1970. É de ver que a época da edição tem muito a dizer, se pensada com rigor: pois justamente ali ficou clara a extrema diversidade da sociedade brasileira, em escala antes nunca vista - de então em diante, não apenas várias vozes novas se apresentaram (gente mais jovem, mas também de proveniência social, étnica, política diversa da dominante), como igualmente nos vários Estados e regiões do país se passou a produzir mais literatura, de tudo que é jeito, forma, tamanho. O Brasil das letras, em suma, ficou mais complexo. E dessa hora em diante não se produziram mais histórias da literatura.
Depois de Bosi, o que temos são manuais de História da Literatura concebidos para o Ensino Médio, já escritos no reino do Vestibular Unificado, hoje substituído em quase todo o país pelo reino do ENEM. Quer dizer: esses manuais, em lugar de se ocuparem de pensar a história de seu objeto, arguindo tudo e repondo o debate, o que fazem é tomar o paradigma inquestionável estabelecido pelo Vestibular e redigir uma narrativa que confira sentido ao que já está dado como relevante. Mas dado, enfatizo, de fora para dentro: do Vestibular, com seus programas, para o mundo da historiografia.
Perguntas
Naturalmente, uma série de perguntas precisa ocorrer a quem se dispõe a cogitar algo como uma nova História da Literatura, brasileira ou de qualquer outra parte, especialmente em um recorte nacional. A primeira é óbvia, mas não irrelevante: que cabimento há na hipótese? Histórias de literatura, especialmente da literatura de um país, cumprem algum papel relevante nos tempos atuais, marcados pela internacionalização dos mercados, pela franca circulação de informações por sobre as fronteiras nacionais e mesmo por cima das restrições linguísticas que tinham força até uma geração atrás?
Essas possíveis novas histórias da literatura teriam agora um papel de canonizar autores e obras, como em outras conjunturas já tiveram? Têm elas algo a fazer neste mundo, caracterizado, na universidade e na crítica em geral, também pela enorme voga de estudos literários comparatistas, que botam a conversar autores, obras e estilos de variada procedência e localização espacial, assim como pela força da visada multiculturalista, que tentou minar a centralidade da tradição letrada na consideração das formações culturais nacionais ou regionais, dentro de uma mesma língua, etnia ou gênero?
Um segundo campo de dúvidas: essa pretendida nova História da Literatura, uma vez que tenha sentido defensável, lidará com todos os tempos do processo vivido no Brasil desde o tempo em que era apenas a América portuguesa? Ou tomará a coisa apenas a partir da Independência, no máximo acolhendo a atividade literária do final do século 18, como fez Antonio Candido, com boas razões, em sua Formação da Literatura Brasileira? Ela acolherá todos os gêneros de literatura, os tradicionais como romance, conto, o drama e as demais formas dramáticas, a poesia épica e a lírica, como também aqueles gêneros historicamente recentes, e de recente aceitação na rotina universitária e escolar, como a crônica ou a canção?
E ainda se conseguirmos responder satisfatoriamente a essas perguntas, restarão outras, não menos interessantes e pertinentes: como se concebe e como se relata uma História de Literatura hoje? Que métodos terão validade, neste tempo em que o labor historiográfico lida com objetos díspares, longe da relativa calmaria de duas ou três gerações atrás, quando parecia seguro lidar com áreas amplas mas bastante nítidas, como a Política, a Economia, a Sociedade? Como fazer isso neste tempo em que as dimensões de tempo e espaço podem ser abordadas com elasticidade infinita, ao contrário da condição nacional ou regional, que limitava grande parte dos trabalhos de descrição histórica?
Poderemos especificar, nesse cenário hostil a uma História da Literatura realmente crítica, dois elementos. Um é a voga do comparatismo, que nos estudos superiores, no Brasil da última geração, em grande parte abandonou ou renegou a dimensão histórica dos fenômenos literários, em favor de um olhar que me parece cabível qualificar como formalista (sem a pretensão científica positiva que carregou em outros quadrantes, em outros tempos), muitas vezes francamente anódino.
O outro elemento tem a ver com as sucessivas modas ideológicas que a cada tanto ocupam o proscênio da atividade dos estudos literários na universidade brasileira, sem dúvida relevantes para apresentar uma demanda social (como o feminismo, o multiculturalismo, etc.), mas também sem dúvida inimigas das interpretações e descrições de conjunto baseadas nos marcos da formação coletiva das nações, da estrutura de classes sociais, etc.
As condições de hoje, segunda década do século 21, não são nada óbvias para um empreendimento historiográfico de fôlego, mesmo em se tratando da literatura brasileira, em muitos sentidos restrita - de pouca força internacional, de relativamente pouco tempo de vida, com um público leitor acanhado, em comparação com a de outros países e línguas. Isso sem contar que qualquer recorte nacional tende a ser rechaçado, nos círculos universitários, como um retorno ao nacionalismo.