Confesso que gosto do virundu, o "ouviramdoipiranga" dos tempos de colégio, dos estádios de futebol, das manifestações, das ruas e das escadarias, o "ouviramdoipiranga" que, nos tempos da ditadura, foi sequestrado pelo poder da hora e se transformou num símbolo de civismo impingido e obrigatório. É uma peça de arqueologia, esse Hino Nacional. Por aqui, tudo o que é do século 19 já se transferiu há longo tempo para a categoria de museu, acolhido - sem volta - para aquela categoria de "poeira do passado" que, dizia o francês Claude Debussy, nem sempre merece respeito. Mas não o virundu. Para ficarmos apenas nos compositores, o Hino Nacional é menos poeira do passado e mais, como diz Ary Barroso na sua hiper-ufanista Aquarela do Brasil, um "abre a cortina do passado". Pois se vão quase 200 anos e as margens plácidas do Ipiranga (ou seria Ypiranga?) continuam lá.
Fui um garoto muito impressionável - e chego à terceira idade mais impressionável do que já fui, pois nunca se vê de tudo... - e "clava forte" era impagável: logo ia eu a pensar nos Flintstones. E o que dizer de "lábaro"? Isso me impressionava muito, pois eu achava que era eu quem ostentava o lábaro estrelado que, então, devia ser um sinal bizarro na testa ou um apêndice indesejado, algo assim constrangedor e inevitável. O "deitado eternamente em berço esplêndido" não me surpreendia tanto, e a "terra mais garrida" foi desmistificada para sempre na peça Apareceu a Margarida de Roberto Athayde que, lá em 1973, fazia com que a protagonista, a Margarida do título, contasse para a plateia a história da professora abusada que, na hora do hino, olhava para ela com olhos de cobiça e cantava "do que a terra... margarida".
É que hoje é 7 de setembro e calhou de ouvir o Hino Nacional. Por cortesia do YouTube se descobre até que a longa introdução instrumental tem letra. Não aquela letra colegial "laranjadachina laranjadachina laranjadachina / abacate bergamota tangerina" (é assim que se cantava no Rio Grande e não como na letra extraoficial "oficial" que tem "abacate" no lugar de "limão doce" e "bergamota" em vez de "abacate", numa autêntica apoteose da fruticultura), mas aquela que tem o verso memorável "gravai a buril nos pátrios anais de vosso poder". E que termina clamando por melhores condições de saúde neste Brasil dos postos sucateados e dos hospitais em colapso: "Eia sus, oh sus!". Ou não?
Calhou também de estar lendo o segundo volume da biografia de Getúlio Vargas que Lira Neto publicou há pouco, e lá está: "Como determinava o protocolo, o hasteamento coletivo foi feito ao som do Hino Nacional, executado por bandas militares e cantado pelo coral infantil regido por Villa-Lobos". Lá vem novamente a cooptação do hino pelo civismo oficial, roubando a chance do significado que ele possa ter para cada indivíduo, por incompreensível que seja o seu texto. É um capítulo que tem sido examinado aqui e ali, este da relação entre música de concerto brasileira e a ditadura de Vargas, mas ainda falta quem a sistematize, quem possa contar como realmente se deu a transformação da música modernista brasileira dos anos 1920 em música de Estado das décadas seguintes.
O que se pode ouvir num 7 de setembro, já que nem tudo se resume aos hinos e às memórias dos hinos? Sempre que chegamos a esta altura do ano me ocorre o Brasil Pandeiro de Assis Valente: "Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros, que nós queremos sambar". Ou até mesmo a Aquarela do Brasil com todos os seus delírios e até mesmo com o seu inesquecível "oh, esse coqueiro que dá coco". E também a Geleia Geral de Gilberto Gil, quase uma reescritura tropicalista do Hino Nacional com suas "tumbadora na selva-selvagem / Pindorama, país do futuro" e "Voz do morro, pilão de concreto / Tropicália, bananas ao vento".
Desfiar esse cancioneiro deve bastar para um feriado de 7 de setembro. Não é necessário ir para a frente, em direção ao rap mais engajado e mais tópico dos dias que correm, ou para trás, em direção ao recenseamento da música de concerto do nacionalismo brasileiro. Ainda mais que a brasilidade em música de concerto, às vezes, explode em lugares imprevistos, como aconteceu com o Macunaíma, de Arthur Kampela, que, uns quatro anos atrás, foi desfilar pelos corredores da filarmônica de Nova York. Mas logo será domingo, e o tumulto da música para um feriado nacional haverá de ter passado e aí será hora de voltar para as coisas do dia a dia, deixando o delírio sonoro para trás.