Então o pianista começou a tocar Villa-Lobos num auditório chamado Villa-Lobos. No Rio de Janeiro. Alguns acordes e me dei conta que aquele era o lugar certo para ouvir aquela música. Ainda mais que se tocava a Suíte Floral, peça da época em que Villa-Lobos ainda era um músico local, embora já bem entrosado com a intelectualidade carioca e com pianistas de nome, como Arthur Rubinstein. Talvez lá fora sobrasse algum Rio de Janeiro daqueles anos dos 1910. Só que naquele momento a pancadaria corria solta na Avenida Rio Branco, mascarados aqui, polícia ali, na iminência do confronto urgente. E aos pés do Pão de Açúcar, Villa-Lobos. A música dele também era iminente e urgente. No lugar certo. Talvez Villa-Lobos seja mesmo um músico local - a música dele viaja bem para outras lonjuras, mas tem valor ali mesmo nas suas raízes. Com e sem pancadaria.
Calhou de estar lendo neste minuto O Boi no Telhado, a coletânea que Manoel Corrêa do Lago organizou sobre a passagem do poeta Paul Claudel e do compositor Darius Milhaud pelo Rio de Janeiro dos tempos da I Guerra Mundial. É que Villa-Lobos, se diz, tem impressões impressionistas na sua música, umas influências de Debussy e da música francesa precisamente daquela época. A Suíte Floral, então, não escapa dessas meio observações, meio acusações. Mas o Rio de Janeiro era profundamente francófono e não havia como Villa-Lobos ser outra coisa, mesmo numa música com títulos idiotas como essa coleção para piano que até uma "alegria na horta" tem. O francesismo é a medida do localismo do compositor e volta-se ao início - ouvir Villa-Lobos num auditório chamado Villa-Lobos no Rio de Janeiro. Há melhor lugar?
Alguns localismos viajam bem, outros nem tanto. Certa vez, me apanhei num teatro da Rua das Portas de Santo Antão em Lisboa assistindo a um musical da Broadway de Leonard Bernstein em tradução no português mais castiço que a Broadway já viu. Começa a peça e sinto o calor insuportável da vergonha alheia de ver o que vi no palco. Desajeitamento cênico total, o desacordo constrangedor entre material e encenação, as danças mal postas, as canções balbuciadas. Dez minutos de espetáculo e já não havia esperança que o salvasse. Sim, certas coisas viajam mal, não tanto pelo desgaste do percurso, mas mais pelo ponto de chegada. Broadway em Lisboa? Não há maneira. Por isso, é bom proteger o localismo de certas músicas, não esquecer de mantê-las integradas à sua paisagem original. Melhor não correr perigo. Assim, mesmo que Villa-Lobos se tenha internacionalizado, ouvi-lo no Rio de Janeiro não oferece riscos e o coloca no contexto exato. Basta olhar a paisagem em volta e já se descobre a razão de aquela música ter sido como é. Mesmo que muito da paisagem tenha se transformado. Mesmo que os acordes, de perto, venham acompanhados das bombas de efeito moral, de longe.
Em Porto Alegre, o que seria? Numa tarde de sol, dessas de final de inverno, um breve passeio a pé mostraria o lugar certo para a música certa. Talvez eu seja um obcecado pela Cidade Baixa, mas é ali mesmo que se daria o passeio. Vindo do parque e atravessando a avenida - cuidado com as obras desse misterioso BRT que começa em lugar nenhum e vai dar em nada! - e chegando à Lopo Gonçalves, primeira parada. Vá-se percorrer de ponta a ponta a rua, passando até mesmo pela Travessa dos Venezianos. Essa é a caminhada para ouvir a música de Armando Albuquerque, especificamente a Peça para Piano 1964 ou, quem sabe?, a Evocação de Augusto Meyer. Se fosse de madrugada, melhor ainda. Há muito de caráter noturno nessas músicas, muito da "calma que anda agora nas casas tristes e fechadas" da qual Athos Damasceno fala num dos seus poemas que ocorreu a Armando musicar. Tudo muito Cidade Baixa.
O que mais? Seguimos em direção ao campus da UFRGS para encontrar a Faculdade de Direito, mas chegando a ela por aquela ruazinha que desemboca quase em frente ao portão central do prédio. É a rua Avaí, quase obliterada da paisagem por um rasgo de avenida de trânsito intenso que passou por cima da nostalgia porto-alegrense, sem remorso. A Rua Avaí de Bruno Kiefer. Ali uma parada para ouvir a Sonata nº 2 e, se houvesse gravação, o imenso oratório Os Campeadores. Bruno falava muito do seu amor pela terra e uma vez foi ali da rua Avaí de horizontes urbanos que ele abriu, para a música, os horizontes vastos da memória gauchesca transformada em música de concerto. Ali os poemas de Carlos Nejar ressoaram em música: "Quando o vento se deslocar / sobre o vento / na terra forte, / os homens serão setas no tempo. / O tempo destila o tempo".
Continuamos o passeio até a Rádio da Universidade, do outro lado da Faculdade de Direito. Como Armando Albuquerque trabalhou muitos anos ali, assim se fecha o círculo da localidade urbana da música porto-alegrense de muitas décadas atrás. Aí está a paisagem das músicas e, do Pão de Açúcar à Cidade de Baixa, as coisas estão, de algum maneira, em seus devidos lugares.