"Laerte: um nome único no humor nacional"
A frase é dita por Angeli em um minidocumentário sobre o cartunista Laerte, ao comentar a facilidade com que o amigo consegue desenhar qualquer coisa: "Ele é um arquivo de imagens". No mesmo filme (assista abaixo), Allan Sieber, um cartunista mais jovem, da geração que se declara abertamente influenciada pelo trabalho de Laerte, Angeli e Glauco na revista Chiclete com Banana, também se admira da mesma característica: "Ele é daquelas pessoa que você pede uma locomotiva, ou uma caravela, e ele tem memória fotográfica".
Declarações assim podem parecer exaltadas, mas não são raridade entre quem trabalha com humor gráfico no Brasil, dando mostras do papel hoje ocupado pelo cartunista Laerte Coutinho entre seus pares. E não apenas pela maestria do traço, mas pela inquietude de todo verdadeiro artista.
Hoje com 62 anos, Laerte, que volta a ter uma tira diária publicada em Zero Hora a partir deste sábado, foi parte de um time que renovou o humor no Brasil nos anos 1980 com as revistas da Circo Editorial, entre elas Piratas do Tietê, que emprestava o nome dos corsários urbanos criados por Laerte. Criar personagens, aliás, foi algo em que Laerte se provou mestre. Ao longo sua carreira, criou tipos presentes no imaginário de mais de uma geração de leitores, como os Gatos, o despirocado super-herói Overman, os moradores do Condomínio, além dos anárquicos Piratas. Poderia ter se acomodado na repetição dessa galeria, por si só mais ampla do que a de muitos artistas de quadrinhos.
Mas, de uma década para cá, Laerte resolveu subverter seu próprio trabalho, experimentando com seu humor e seu traço, levando o próprio formato de tira humorística diária ao limite: ainda é a mesma coisa algo tão distante da forma? Depois que passou a falar abertamente sobre seu próprio processo pessoal como transgênero, a partir de 2009, Laerte também se tornou uma voz contrária às posições de figuras públicas mais conservadoras, em defesa de causas como o combate à homofobia e a defesa da livre identidade de gênero. A reinvenção de um artista que ocupa um lugar único no humor nacional.
Entrevista: Laerte
Zero Hora - Seu nome é mencionado como referência, com graus variados de entusiasmo e admiração, por um bom número de artistas gráficos contemporâneos, de seu parceiro Angeli a nomes de outra geração, como André Dahmer ou Alan Sieber. Em 2010, o prêmio HQ MIX indicou seu nome para a distinção Grande Mestre. Como vê essas homenagens?
Laerte - Fico constrangida com elas. Não me vejo com tanto brilho... Esses que você cita, sim, são minhas referências.
ZH - Qual seu método ou disciplina de trabalho para a produção de uma tira diária? Trabalha com que antecedência?
Laerte - Varia um pouco, mas costumo trabalhar meio da mão pra boca. Quer dizer, mando hoje a tira que vai sair amanhã. Tenho tido problemas com a construção e execução das minhas histórias, o que anarquiza bastante a pouca disciplina que consigo manter.
ZH - Que problemas são esses?
Laerte - São dúvidas variadas e intensas, sobre roteiro e finalização. É um pouco difícil me alongar mais do que isso, numa conversa curta
ZH - Tem acompanhado a produção contemporânea de quadrinhos? Recentemente, várias obras foram publicadas no Brasil em parceria entre ilustradores e escritores. O mercado de quadrinhos do país hoje está de alguma forma "maduro", embora não haja um fenômeno de vendas nacional como foi a Chiclete com Banana em seu auge?
Laerte - Acompanho com a atenção possível - mais o que sai no Brasil do que no Exterior. De um modo geral, jovens autores (muitos e bons) buscam hoje publicar livros, mais do que revistas; miram mais a livraria do que a banca. Isso é resultado de um processo longo e turbulento, característico da economia brasileira nessas três ou quatro décadas, combinado com as transformações tecnológicas que vêm encarecendo produtos em papel.
ZH - Foi publicada há pouco sua HQ Vizinhos, uma história longa em que a narrativa é contada apenas visualmente, sem diálogos. Esse trabalho foi, de algum modo, uma forma de se desafiar, uma vez que sua produção nos últimos anos têm sido concentrada em tiras ou em histórias curtas?
Laerte - Foi um baita desafio - a partir da proposta de linguagem da coleção MIL, feita pelo Rafael (Coutinho, filho de Laerte e também ilustrador, autor de Cachalote, em parceria com Daniel Galera). Comecei e parei muitas vezes, até chegar nesse resultado.
ZH - E que dificuldades e recursos você encontrou ao abolir os balões, retomando, em parte, algo que já havia feito, mas em chave mais humorística e até mesmo nonsense em A Noite dos Palhaços Mudos?
Laerte - O problema maior não foi tanto a ausência de texto e fala. Já trabalhei muitas vezes, em histórias de páginas e em tiras, com a narrativa "muda". O problema foi a extensão da história, a dinâmica (para mim) complexa que impõe.
ZH - Como tem acompanhado as recentes manifestações no Brasil? Como vê o atual momento dos protestos da juventude?
Laerte - Fiquei animada com essas manifestações, participei delas, dentro do possível - com presença e com meu trabalho. Acho que são sinal claro de que a população não vinha sendo observada e representada com clareza pelos sistemas e instituições que temos. Vejo com animação as propostas de mudança que vêm sendo apresentadas, pelos governos e pelos partidos - e as formas de participação com que essas propostas vêm sendo acolhidas.
ZH - Olhando de fora, sua produção parece ter passado por guinadas que coincidem com momentos cruciais de sua vida. Depois de uma grande perda (em 2005, um dos filhos do artista, Diogo, morreu em um acidente de carro, aos 22 anos) suas tiras se tornaram mais metafísicas, quase como se questionando a necessidade de sentido das narrativas em geral. Agora, quando vem refletindo pessoalmente sobre papéis de gênero, seu trabalho tem oferecido uma visão sobre essas questões. Concorda com tal avaliação?
Laerte - Minhas tiras já vinham se transformando; esse questionamento da linguagem que eu usava já vinha acontecendo há pelo menos dois anos... Também já vinha considerando a transgeneridade, desde 2004. Mas concordo que todo esse processo - em que produção intelectual, sentimentos e expressões no modo de vida se misturam -, ganhou uma dinâmica dramática com a morte do meu filho.
ZH - Essa sua volta à discussão de temas prementes da sociedade brasileira, como o machismo, a homofobia, os papéis de gênero também pode ser considerada uma resposta à ascensão de um grupo de novas vozes e posturas conservadoras no Brasil, do qual Marco Feliciano é, talvez, o personagem mais recente e mesmo caricato?
Laerte - Talvez a ascensão (eu diria a excitação) dos grupos conservadores seja uma resposta ao crescimento da consciência e das demandas da população LGBT. Até então, a direita não tinha tido a necessidade de apelar para formas mais organizadas de impor seus dogmas, uma vez que os direitos negados não eram claramente exigidos - uma vez que a humilhação era aceita com resignação. As coisas mudaram - como você diz, esses temas passaram a ser considerados "prementes", perderam a sua invisibilidade. Ainda bem!
ZH - Em 1987, saiu no terceiro número da revista Circo uma história que até hoje figura entre seus trabalhos mais lembrados, A Insustentável Leveza do Ser, na qual um jovem, Renato, era confrontado com as "identidades ocultas" ao seu redor: seu pai era uma mulher, sua mãe era um homem, o mundo era um painel pintado... Analisando seu trabalho em retrospecto, já estavam prefiguradas nessa história as inquietações que levariam à sua própria transformação?
Laerte - Pode ser - não gosto muito de auto-exegeses...
ZH - Como é sua relação com os leitores de jornal? Sei que seus trabalhos vêm sendo publicados em seu blog na internet (www.manualdominotauro.blogspot.com.br), no qual a resposta do público é mais rápida, mas que tipo de retorno você recebe dos seus leitores na mídia impressa?
Laerte - As respostas vêm mais pela via digital, isso é inegável. Pra falar a verdade, acho que vêm TODAS pela via digital, mesmo comentando o que saiu em papel. E é bastante coisa - nem consigo dar conta de tudo. Mas gosto muito dos momentos de encontro ao vivo, em palestras ou lançamentos.
ZH - Muito vem se discutindo a questão dos limites, consequências e orientações ideológicas do discurso humorístico. Em sua opinião, essa discussão tem rendido frutos positivos no que diz respeito à construção de uma consciência crítica no país ou tem se limitado a uma pauta de estabelecimento de limites? Há limites, a propósito?
Laerte - Ainda é uma discussão inicial. Sou contra a censura, mas a favor do debate e da crítica. Os que trabalham com a comicidade (mais do que com o humor) precisam compreender que não existe neutralidade em seu discurso; que toda piada tem carga ideológica e que muitas vezes é preciso que se estabeleça uma discussão a respeito. Grupos que sempre foram vítimas de preconceito vêm conseguindo graus maiores consciência e de aquisição de direitos. Não há por que sacralizar linguagens de humilhação e estigma e declará-las fora de discussão.
ZH - Teria algo a dizer aos leitores de Zero Hora que terão suas tiras de volta ao jornal?
Laerte - Sim, que me sinto honrada com a atenção de vocês! Beijo!