O rio é um organismo vivo, que joga para fora tudo o que rejeita. É o que observa o marceneiro e pescador amador Elson Lemos, 59 anos. E desse lixo pode surgir arte — ou uma ferramenta para tal: com aquilo que é recusado pelas águas, ele tem construído instrumentos de cordas.
Primeiramente, Elson utilizou madeiras recolhidas na beira do Guaíba para desenvolver o que batizou de "rêmola", uma variação do violão. Em seguida, montou um violão elétrico e, agora, já planeja os próximos instrumentos.
Morador do bairro Florida, em Guaíba, Elson costuma pescar nas águas que ficam a 650 metros de sua casa. Ele lamenta achar todo tipo de "devolução" do Guaíba quando vai à praia — de fralda descartável a garrafa pet. Porém, as chuvas intensas de janeiro trouxeram outros tipos de materiais para as margens. Cita ter deparado com capacetes de motociclistas e caixas industriais enquanto remava em seu caiaque. E madeira, muita madeira.
Enquanto a prefeitura do município começou a recolher os materiais aos poucos, Elson refletiu que algo ali poderia ser aproveitado. Havia muita madeira nobre na beira do Guaíba. Lembrou-se de um jovem morador do bairro, que costuma frequentar a praia à tarde para tocar violão. Aliás, ele mesmo é músico, tendo atuado como compositor e participado de festivais nativistas entre os anos 1990 e 2000 — inclusive, lançou um CD nesse período. O marceneiro vislumbrou algumas conexões, como a inserção social pela música e a importância da reciclagem para o meio ambiente.
Entre as madeiras, Elson diz ter achado imbuia, guatambu, canela, mogno e eucalipto. Descobriu que o ouro em seu garimpo — realizado umas duas vezes por semana — seria o cedro. Ele localizaria esse tipo de madeira especialmente em marcos de portas antigas, que seriam fundamentais para o braço do violão. Segundo Elson, o material coletado é um indicativo do que se pode construir.
— O mais difícil é conseguir uma peça inteira que se preste para o braço. O resto tudo é negociável — frisa.
Até então, o marceneiro nunca tinha construído um instrumento de cordas. Antes, trabalhou em concertos pontuais de violão e chegou a montar um cajón peruano. Elson foi, aos poucos, aprendendo o processo pela internet, essencialmente com vídeos no YouTube.
Com os primeiros materiais recolhidos, percebeu que não poderia criar um instrumento de corda muito grande. Então, surgiu a ideia do que batizou de "rêmola".
— Como peguei materiais vindos da água, decidi produzir um instrumento com motivos náuticos, até para ficar bem ilustrado. A rêmola tem o formato de um remo nativo, e a boca do instrumento é o recorte da proa de um barco. O cavalete das cordas tem o formato de uma canoa — explica.
Elson descreve a rêmola, contendo quatro cordas, como um violão simplificado ou um ukulele tenor. O autor atesta que a afinação do instrumento seria na sequência do violão: a primeira corda é mi, seguida de si, sol e ré. Contudo, ele garante que outras afinações podem ser aplicadas, como a do guitarón.
— Qualquer pessoa que tenha o básico do violão vai tocar rêmola — assegura. — É um instrumento eclético, cabe desde uma milonga a uma música porrada, um rock.
Elson trabalha nos instrumentos na oficina que tem no quintal de sua casa. O marceneiro relata que a madeira é toda preparada manualmente, sendo recortada, afinada e aplainada à mão. Posteriormente, o material é colado em tiras. Ele não usa madeiras inteiras, mas sim peças pequenas que são emendadas. É um trabalho muito delicado e específico, que requer pouca máquina — só utiliza a serra circular para afinar o material.
Além da madeira, o osso de canela de boi — também recolhido na beira do Guaíba — se transforma em pestanas e rastilhos para os instrumentos. Já as tarraxas, os trastes e as cordas são os únicos materiais comprados em separado.
Encontrando ouro
A rêmola foi construída em pouco mais de 20 horas de trabalho, entre 10 dias. Já o segundo projeto de Elson, um violão elétrico, foi concluído em 40 horas de trabalho distribuídas em 18 dias. De acordo com o marceneiro, o resultado da nova incursão foi ainda mais harmônica do que a primeira experiência.
A princípio, Elson não tem planos de comercializar seus instrumentos. Ele quer melhorar ainda mais a qualidade de sua produção. Se possível, gostaria de inseri-los em algum projeto social, que pudesse promover um retorno daquilo que o Guaíba lhe trouxe.
— Gostaria de inspirar outras pessoas a terem um olhar mais carinhoso para um material que é tão caro ao meio ambiente. Algo que pode ser reciclado, com fins mais nobres do que fazer um pallet ou jogar no fogo para queimar. Seria ideal que pudessem enxergar um novo sentido a essas madeiras, dando-lhes uma nova vida — reflete.
Quando acabarem as madeiras na beira do Guaíba, Elson pretende visitar ecopontos do município, além de galpões e fazendas da região para colher materiais. O marceneiro começou, nos últimos dias, a trabalhar em uma nova rêmola — que, de acordo com ele, terá alguns elementos náuticos a mais.
A reportagem de GZH acompanhou Elson no local onde costuma recolher as madeiras. Durante os cliques para a sessão de fotos, o marceneiro avistou o seu ouro: um pedaço velho de porta. Ou uma madeira de cedro. Ou, ainda, o braço do violão. Da rêmola. Ele voltou para casa abraçado no começo de um novo instrumento.
— É incrível! Tu olhas aquela casca e a sujeira por fora, e parece que não tem nada ali. Mas tem um cedro de excelentíssima qualidade — celebra.