Por Marcélo Ferla
Jornalista, podcaster do Re:mix e do Página Não Encontrada
Desculpe o auê, mas Rita Lee não foi a rainha do rock brasileiro, como se apregoa.
Rainhas são determinadas por hereditariedade, seguem protocolos enfadonhos e não podem ter opinião própria. Rita Lee Jones até é filha de um Charles, que não é o rei da Inglaterra e queria batizá-la de Bárbara, como a cidade em que ele nasceu, e isso não ficaria mal, mas é a antítese disso tudo. Melhor pensar na imagem que Caetano lhe concedeu: é a mais perfeita tradução de uma cidade grande que é o avesso do avesso do avesso.
A paulistana corajosa de opiniões fortes encarou de frente as imperfeições do mundo (e de si mesma) para conquistar o posto de uma das mulheres mais influentes do Brasil na segunda metade do final do século 20. Pioneira, Rita fez rock como ninguém nunca mais fez por aqui, ainda menininha, nos anos 1960, com Os Mutantes, uma das únicas bandas nacionais do gênero que realmente importam no mundo (a outra é o Sepultura), e no começo de sua carreira solo, nos anos 1970. Sábia, fez pop com riffs de guitarra como poucos e poucas nos anos 1980, quando atingiu a maturidade destilando uma coleção inigualável de sucessos assobiáveis entre Lança Perfume (1980) e Bwana (1987). Madura, Rita fez graça com tudo, fez muito pelas mulheres e surfou na própria imagem com extrema habilidade, porque sabia rir de si mesma.
Rainhas não vivenciam a balada dos loucos viajando de ácido como Rita, que foi presa na ditadura por porte de maconha e parou de consumir drogas quando bateram as bad trips, mas nunca comprou a hipocrisia institucional dos moralistas e por isso inclusive foi presa em seu último show. Rainhas não são irônicas e desafiadoras no início do fim, como a Rita que provocou a direita ao batizar o tumor que a venceu de “jair”.
Com 30 discos lançados e 55 milhões de cópias vendidas, incluindo os discos com Os Mutantes, Rita Lee viveu seu auge musical entre as décadas de 1960 e 1990, e se manteve até morrer, dia 8 de maio, aos 75 anos, como uma personagem fundamental da arte brasileira, reciclando o repertório e encarnando a “tia doidona” que todo mundo gostaria de ter.
Artistas como ela estão em tudo e em todos: no humor afiado e irônico do garoto “irreverentchi” do Instagram, nos riffs de guitarra do moleque que ainda acredita no rock, na vida do casal que namorou ao som de Mania de Você, na luta universal e diária das garotas do #metoo. Aliás, Rita não apenas está na vida das mulheres brasileiras como proporcionou uma mudança de paradigmas quase inacreditável se pensarmos no machismo normalizado dos tempos em que estabeleceu sua carreira solo. Expulsa dos Mutantes, que virou uma banda 100% masculina, tornou-se bandleader de outro grupo de roqueiros machos, o Tutti Frutti, entre 1973 e 1978, e a partir de 1979 formou dupla com o marido, Roberto de Carvalho, mas seu protagonismo é notório neste período.
Com um Roberto pra chamar de seu, Rita apresentou uma sequência fulminante de sucessos populares digna de um Roberto Carlos, retratando o cotidiano de um jeito tão simples e direto que seu público mais fervoroso faz nascer uma ritaleemania. Com uma vocação pop invejável, ela conseguiu oferecer um verdadeiro manual de conduta para as mulheres sem qualquer viés panfletário e sem tirar o homem da pauta, em frases como “me dá o prazer de ter prazer comigo” ou versos como “Toda mulher quer ser amada/ Toda mulher quer ser feliz/ Toda mulher se faz de coitada/ Toda mulher é meio Leila Diniz”.
Com uma guitarra na mão, Rita conversou com leitoras empoderadas de Camille Paglia e com mulheres-belas-recatadas-e-do-lar ao mesmo tempo, e foi exemplo para a dona de casa que não precisaria ter vergonha de ficar “de quatro no ato” e para a mulher em busca de independência que bradava que “sexo frágil/ Não foge à luta/ E nem só de cama/ Vive a mulher”.
Se você não sabe por que o rock não conversa mais com a garotada, é porque faltam artistas como Rita Lee, que dominava todos os ritos do pop, para ensinar os atalhos. Vai fazer falta, você.