A repercussão da intimação recebida pelo Boteko do Caninha por parte do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP/RS), que proibiu música ao vivo ou mecânica com amplificação no estabelecimento, tornou-se motivo de preocupação para os moradores da região que reclamaram do barulho excessivo. A determinação, segundo alega o proprietário, é motivada por racismo, por se tratar de um bar de samba e pagode, e coloca em risco o futuro do estabelecimento, que ficou dois anos fechado por causa da pandemia de covid-19. No entanto, os moradores argumentam que o som elevado até altas horas impede o descanso e prejudica o trabalho.
Guilherme*, morador do bairro, reforça que os vizinhos não querem fechar o bar, apenas encontrar uma solução para o problema da comunidade.
— Ninguém aqui está preocupado em fechar bar, em que não haja um espaço deste ou daquele tipo de música, nenhuma pessoa que eu conheço dessa comunidade que nós nos organizamos pensa assim. O que não queremos é barulho. Se fizer as atividades com proteção acústica, para nós, o problema está resolvido — enfatiza Guilherme.
Os moradores encaminharam um abaixo-assinado ao MP/RS solicitando providências. O órgão, por sua vez, abriu um inquérito, em novembro de 2021, e realizou audiências entre as partes. Na última, em janeiro, o promotor instruiu o bar a fazer adequações e parar com a música. O Boteko do Caninha teve oito meses para se adequar, mas não tomou nenhuma providência, conforme a população, o que levou à interdição.
— Se passaram oito meses e só o que fizeram foi show, noite sim e noite também. O alvará é até meia-noite. Às vezes, vai até a 1h — desabafa Guilherme — Há uma série de fatos distorcidos e com uma grave acusação de preconceito, sendo que a comunidade está sofrendo com o barulho há anos. As pessoas se mudam, dormem em casas de parentes no final de semana, não aguentam, reclamam para as autoridades e nada acontece. Acaba ditando nosso horário de descanso. Vizinhos idosos ou com bebês não conseguem dormir — acrescenta.
Evandro Carvalho, proprietário do Boteko do Caninha, que leva seu apelido, confirmou a GZH a interlocução entre as partes no inquérito do MP/RS, mas alegou que teve problemas nas chamadas de vídeo durante as audiências e, depois disso, o MP/RS apareceu com a determinação na última sexta-feira (12).
Bruna* mudou-se para o Menino Deus em dezembro de 2020, em meio à pandemia, período no qual os bares não podiam abrir, mas já tinha conhecimento da situação no local há alguns anos.
— Meu ex-namorado morou no prédio da frente na Rua Múcio Teixeira, então falou: “Olha, tu vai comprar apartamento lá? Se prepara, porque ali tem o Caninha” — conta.
Segundo relatos dos moradores, o bar abre à tarde e deveria funcionar até meia-noite. Nas segundas-feiras e, eventualmente, em outros dias, o estabelecimento não funciona. Nas sextas-feiras, a música começa cedo, atrapalhando os vizinhos em teletrabalho. Os moradores relatam ainda que o som se intensifica após as 23h. Antes do inquérito, conforme os vizinhos, o bar costumava ultrapassar o horário de funcionamento, até 1h ou 2h da manhã, informação que também foi confirmada pelo proprietário, que salienta que já adequou o horário. Ocasionalmente, o público permaneceria ainda até uma hora a mais com som nos carros em frente ao local.
— Este ano colocaram um vidro, mas é bastante fino. É interessante ter vida perto da tua casa, ver movimentação, a gente só se incomoda que são vários dias na semana passando das 22h — relata Bruna.
Carvalho afirma que os vidros foram colocados pouco antes de ser intimado pela primeira vez, quando a música ao vivo ainda não havia sido retomada, devido à pandemia.
— Coloquei os vidros, gastei bastante, inclusive falei para eles que não podia fazer projeto acústico no momento porque vinha de dois anos de pandemia parado, mas que já tinha colocado vidro e que, mais para frente, poderia fazer — argumenta o proprietário do Boteko do Caninha, enfatizando que suas contas e seus prejuízos acumulados durante o período não foram levados em consideração na decisão.
A pedido do MP/RS, a prefeitura de Porto Alegre produziu um laudo que atesta o incômodo gerado pelo som, o que motivou o Ministério Público a pedir a interdição para músicas.
“Pelos resultados apresentados, pode-se concluir que havia emissão de som incômodo no período avaliado, pois a diferença entre o nível de pressão sonora total e o nível de pressão sonora residual foi superior a 5dB nos pontos 1 e 2, de acordo com as definições dos artigos 1º e 3º, inciso X, alínea 'a', do Decreto Municipal 8185/1983, que regulamenta a Lei Complementar 65/1981”, consta no laudo emitido em 13 de julho. “De acordo com os moradores, os níveis de pressão sonora no dia e horário da medição estavam mais baixos do que a pior situação por eles presenciada. Eles relatam que existem apresentações musicais mais ruidosas”, segue o documento.
A parte interna do bar, onde anteriormente eram realizadas as apresentações, conta com proteção acústica, porém os shows foram transferidos para o pátio, que é maior e permite mais público, mas não é tratado acusticamente.
De acordo com Carvalho, a parte com proteção acústica foi considerada antiga, e os clientes querem ficar do lado de fora, com churrasqueiras, onde é maior, mais agradável e mais adequado às recomendações sanitárias. O proprietário ressalta ainda que o espaço interno é muito pequeno para comportar a grande quantidade de público e que, às vezes, chega a ser necessário fechar as portas para não entrar mais pessoas, que muitas vezes ficam na rua.
Quanto a possíveis soluções para o problema para além de um investimento em projeto acústico, Carvalho destaca que pensa em voltar a operar internamente e que baixou “bastante” o som após as solicitações de providências no inquérito. O proprietário do bar tenta reverter a determinação e organiza agora um abaixo-assinado para levar ao MP/RS.
Acusações de racismo
Além dos problemas sonoros, os moradores repudiam a relação com preconceito e racismo estabelecida após a repercussão do caso.
— O bar foi para as redes sociais, teve apoio de vereadores, posicionou-se de uma maneira muito forte dizendo que isso está embasado em preconceitos, “nós estamos sendo perseguidos porque nós fazemos roda de samba”. Não existe absolutamente nada disso — reitera Guilherme.
Bruna relata ainda que muitos vizinhos manifestaram medo de solicitar providências e que a vizinhança agora preocupa-se com o sofrimento de represálias e manifestações.
— Ontem (15) fiquei bastante surpresa com o que a gente viu nas redes sociais, manifestações de figuras políticas com a distorção que foi dada ao caso, porque foi comentado que foi interditado por racismo. Estão imputando um crime que não existe.
Para Guilherme, o movimento feito por políticos que querem reverter ou mediar a situação deveria ter sido feito desde o princípio, ao invés de publicações nas redes sociais. Bruna acrescenta:
— Foi uma distorção bem maldosa. Eu fico preocupada, porque pessoas que não sabem o que está acontecendo podem comprar essa narrativa e isso ir para outra esfera. Porque a gente sabe muito bem que racismo é crime, e o Ministério Público não ia interditar um local com base em racismo. É uma pena que isso esteja acontecendo dessa forma.
*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados