Desde o início da polêmica entre o sertanejo Zé Neto, da dupla com Cristiano, e a cantora Anitta, os valores investidos em cultura com dinheiro público voltaram ao centro de grandes debates. Mas a bola da vez não é mais a tão atacada Lei Rouanet e, sim, os repasses diretos feitos por prefeituras a artistas que se apresentam nos municípios.
A polêmica começou quando Zé Neto fez um comentário criticando colegas do meio artístico que "dependem de Lei Rouanet". Na ocasião, o sertanejo ainda alfinetou Anitta, fazendo referência a uma tatuagem íntima da artista.
— Não dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no "toba" para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente — disse ele durante um show com suposto cachê de R$ 400 mil pago pela prefeitura da cidade mato-grossense de Sorriso.
A fala gerou revolta entre os fãs de Anitta e acabou motivando a uma série de investigações do Ministério Público sobre contratos de prefeituras com artistas sertanejos, que envolveriam cachês com altos valores pagos com dinheiro público.
Para o professor e pesquisador de políticas públicas para a cultura Miguel Jost, entrevistado do programa Timeline, da Rádio Gaúcha, na manhã desta quarta-feira (8), o que levantou a discussão foi a "hipocrisia" de artistas que vêm atacando possibilidades de fomento regulamentadas por uma série de fatores fiscalizadores, como é o caso da Lei Rouanet, enquanto fazem uso de outros mecanismos menos transparentes.
Segundo Jost, o que ocorre no caso da Lei Rouanet é que o Estado oferece um desconto no Imposto de Renda da empresa que investir dinheiro próprio em projetos culturais. Não há, portanto, nenhum repasse direto de dinheiro público e, além disso, somente projetos aprovados pelos pareceristas da Secretaria Especial da Cultura podem receber investimentos via Rouanet — investimentos que vêm das empresas, não do governo.
— É muito equivocada a forma como começou a ser falado da Lei Rouanet nos últimos anos no Brasil, como se o Estado estivesse comprando artistas para ganhar apoio político e tirando dinheiro diretamente do tesouro público para dar a esses artistas. Isso nunca aconteceu — comenta o especialista. — A Lei Rouanet é uma lei de caráter liberal, que busca incentivar empresas privadas a investirem em cultura e arte. A empresa privada investe em um projeto artístico e o Estado entra com uma contrapartida de dar um desconto no Imposto de Renda dessa empresa. Isso acontece em várias áreas e de diversas formas no Brasil. Não é uma verba que está no tesouro público, disponível, que o Estado pega e entrega na mão do artista — explica.
Já no caso das contratações feitas por prefeituras, diferentemente, o dinheiro sai direto do caixa dos municípios. Conforme o especialista, trata-se de uma ação aparentemente legal, se não houver nenhuma irregularidade no processo, mas questionável, pois geralmente são pagos altos valores aos artistas contratados, por municípios que têm aspectos em situação precária.
— As cidades dispõem de orçamentos pequenos, o Brasil vive um momento difícil na sua economia e quando a gente vê cidades com problemas graves de educação e saúde pagando cachês muito acima do que inclusive é o preço de mercado desses artistas, é um pouco assustador — comenta. — O que entendemos, a partir desse lugar da contratação direta, é que qualquer caso, quando estamos falando do poder público, precisa de transparência. A população precisa entender que boa parte do recurso do seu imposto, do recurso que precisa retornar para ela em investimento de educação, saúde e outras coisas importantes, está sendo gasto naquele show.
Foi justamente essa disparidade entre as condições de vida em determinados municípios e os valores pagos por eles a determinados artistas que motivou uma série de investigações do Ministério Público após a fala de Zé Neto. É o caso, por exemplo, de Teolândia (BA), cidade que foi recentemente devastada por chuvas, mas teria gasto R$ 1,2 milhão para contratar shows de Gusttavo Lima e outros artistas (o cachê do sertanejo seria de cerca de R$ 700 mil). A apresentação acabou sendo suspensa por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Na opinião do especialista, é positivo que os órgãos competentes estejam olhando com maior atenção para casos como esse. O que Jost pondera é que as cidades têm, sim, direito de realizar tais eventos, ainda que estes possam ser questionados.
Para ele, é preciso entender um outro ponto de vista: em sua maioria, são municípios pequenos, do Interior, cuja população dificilmente teria condições de ter acesso a shows de grandes artistas. Assim, há um apelo de democratização do acesso à cultura.
O pesquisador, no entanto, contesta o quão produtivo é investir tanto dinheiro em uma única apresentação, enquanto os recursos poderiam ser destinados a incentivar a produção de artistas locais, por exemplo.
Jost acredita que a grande questão está na transparência — seja por parte dos artistas, em seus discursos, ou por parte dos gestores públicos quanto ao uso responsável dos recursos.