Por Guto Leite
Cancionista e professor da UFRGS, autor do livro “Devoção” e do disco “Máquina do Tempo” (2021), entre outros
Antes de falar do álbum Avenida Angélica (2022), de Vitor Ramil, com canções a partir de poemas de Angélica Freitas, melhor limpar o terreno.
Primeiro: Avenida Angélica é uma via aberta por Vitor em Satolep, sua cidade-duplo de Pelotas, terra-natal de ambos. Como nas melhores alegorias, tem algo de abstrato e algo de concreto; seu estatuto oscila entre uma espécie de miragem e uma existência material, um manto que cobre Pelotas sob medida. Ao mesmo tempo, a expressão é da própria Angélica, no poema “ringues polifônicos”, em Rilke Shake (2006), referindo-se também a uma avenida de São Paulo, sendo que a canção homônima abre o show. Vejam o nó.
Segundo: sou do time “canção é canção, poema é poema”. Uma não é mais do que outra, são linguagens distintas e cada qual usa seus recursos para expressar o que deseja. Musicar um poema não é o mesmo que colocar melodia numa letra de canção. O poema não está carente de nada, não pede nada, está em sua forma final. Musicar um poema, portanto, é ou acrescentar elementos que o poema não tinha ou perceber e delinear suas melodias, prosódica e musical. Não é gesto simples, tanto que não temos tantos discos assim na música popular brasileira. Délibáb (2010), do próprio Vitor, Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé: de Ariana a Dionísio (2005), de Zeca Baleiro, Estrela da Vida Inteira (1986), de Olivia Hime, quantos mais?
Terceiro: Vitor e Angélica são artistas maduros em suas linguagens. Apesar dos 10 aninhos a mais do compositor e da desigualdade entre os alcances da música popular e da poesia neste país, um não deve nada ao outro na parceria. Se os poemas de Angélica são amplificados em palcos inauditos, a dicção de Vitor ganha tons e ângulos novos. Trata-se de um encontro, promovido pelo compositor, é verdade, mas não seria exagero pensar num disco de ambos.
Dito isso, Avenida Angélica é um álbum ao vivo com 17 canções e uma declamação, Ítaca, por Angélica Freitas – há também trechos falados de Vitor em A Mina de Ouro de Minha Mãe e Minha Tia e R.C.. Os poemas musicados são sobretudo de Rilke Shake, mas também alguns de Um Útero É do Tamanho de um Punho (2013) (recomendo muito que ouçam o disco lendo os livros); são baladas, em sua maioria, mais um blues, Cosmic Coswig Mississipi, dois sambas, Mulher de Malandro e Versus Eu, e até um xote, Bigodinho. As formas originais dos poemas são quase sempre seguidas à risca, com poucas modificações – no vídeo do espetáculo, Vitor diz que Angélica ouvia as composições e trabalharam juntos nessas mudanças.
Em que pese um ou outro verso menos natural – e tenho um grilo particular com Mulher de Rollers, em que a ironia final do poema se perde –, é evidente que Vitor se mostra de novo como um mestre do ofício de fazer canções. Melodias notáveis e variadas, achados entoativos e resoluções extraordinárias para certas encrencas na transposição dos poemas. Sendo sucinto, basta dizer que a Angélica escreve basicamente em versos livres e a canção geralmente é uma linguagem mais regular. Vitor, portanto, em alguns momentos, incorpora a flutuação rítmica, em outros, acelera ou desacelera dentro do verso do poema para obter um verso de canção regular. Ainda sobre a exuberância do disco, por mais que algumas vezes eu tenha a impressão da voz do Vitor um pouco mais aprisionada que nos discos anteriores, também acho inconteste que seja um grande cantor, na maneira como timbra sua voz, como troca de registros com naturalidade e sutileza e como interpreta alguns tons específicos da poesia de Angélica Freitas. Isso de as canções se concentrarem nele, acompanhado de violão, permitiu que provássemos, sem desvios, de suas qualidades como intérprete.
Gostaria de mencionar ainda o quanto as canções de Avenida Angélica contribuem para a leitura crítica dos poemas. O trabalho formal de Angélica é subterrâneo, e concordo totalmente com o Vitor quando ele sublinha a sofisticação de sua poesia. Como as canções se constroem pelos andaimes dos poemas, elas funcionam como lupas para o trabalho poético da Angélica. Aliás, as muitas variações de humor na poesia de Angélica acho que recuperaram uma tonalidade perdida na palheta de Vitor Ramil. A sátira, o cinismo, o absurdo, o escárnio etc., cantados pela voz semiaristocrática do Vitor, me lembram da irreverência do Barão de Satolep e da Paixão de V Segundo Ele Próprio (1984)...
Em suma, Vitor Ramil e Angélica Freitas batizaram e inauguraram sua avenida em Satolep, cidade que já havia incorporado Simões Lopes Neto, Lobo da Costa e Francisco Santos em Satolep (2008) e recebido, em “residência artística”, o percussionista Marcos Suzano em Satolep Samba Town (2007). Temos uma avenida diferente agora, mais próxima, mas mais radical do que o jovem Vitor. (Satolep é uma canção de A Paixão de V..., vale lembrar.)
Uma avenida com vida própria na cidade, como vai ser? E que coragem, hein!? Com grande prazer, nos resta acompanhar como cresce essa cidade com sua mais nova moradora e seus próximos movimentos.