Vitor Ramil cita o cineasta francês Jean-Luc Godard, que dizia que uma obra de arte tem que correr riscos, pois, caso contrário, não tem valor. Ele também menciona uma história da cantora canadense Joni Mitchell, que, depois de se queixar que errava muito ao piano, pois não entendia o instrumento, ouviu um "siga o erro" como conselho de um músico. É nesses dois casos, sobre correr riscos e errar, que o músico pelotense se inspira para divulgar o seu mais recente trabalho, o álbum Avenida Angélica, que será lançado nesta quinta-feira (7) nas plataformas digitais.
Para a sua nova obra, o artista musicou os poemas de Angélica Freitas presentes nos livros Rilke Shake e Um Útero É do Tamanho de um Punho e eles se transformaram em 18 faixas — 17 interpretadas por Vitor e uma declamada pela própria autora —, que foram gravadas em duas noites, em 7 e 8 de agosto de 2021, em um vazio Theatro Sete de Abril (que vem passando por restauros desde 2010), em Pelotas.
Foi a primeira vez que Vitor gravou uma apresentação sua ao vivo. E isso ocorreu justamente em um período de frio intenso e no meio de um canteiro de obras, sem sistema de calefação ou de desumidificação — vertia água das paredes. E tudo isso no meio das incertezas da pandemia. Foi uma soma de riscos e, também, de abraçar os possíveis erros.
— Sempre gostei de correr riscos com o meu trabalho. Eu nunca fiz o óbvio. E essa questão de seguir os erros é algo que faço quando componho. Eu vou experimentando e, eventualmente, faço algo que não estava previsto. Às vezes, até um acorde que eu erre eu procuro valorizar, vou atrás. Dou muita margem para ser surpreendido por mim mesmo. O erro sempre é uma estratégia de ir adiante — conta Vitor.
Vitor, Angélica e o Sete
O artista começou a musicar os poemas de Angélica Freitas em 2008, logo após conhecer o seu livro Rilke Shake, presente que ganhou do editor que tinham em comum na época. Foi ali que ele descobriu que ambos eram conterrâneos. A dupla logo começou a se falar a distância — ela morava na Holanda na época —, e Vida Aérea foi o primeiro texto de Angélica em cima do qual Vitor trabalhou.
Em 2010, ela voltou para Pelotas, e o músico descobriu que a poeta era sua vizinha — morava a uma quadra de sua casa. Eles se aproximaram e foram colaborando diretamente, até que Vitor se deu conta que tinha um repertório consistente. O primeiro passo para colocar esse trabalho na rua foi em um show que ele fez no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, em 2019. Após aumentar o repertório, o músico iria levar o espetáculo para outros lugares, mas a pandemia interrompeu os planos.
Porém, antes disso, ainda em 2017, a obra de Angélica apareceu em outro trabalho de Vitor: o disco Campos Neutrais, onde ele registrou Stradivarius, que está no novo também.
— Eu quis gravar essa música naquele momento porque eu achava que tinha muito a ver com o restante do repertório. O restante estava guardando para este trabalho que reuniu tudo — explica.
Vitor e Angélica vão estar juntos em uma live de lançamento do álbum nesta quinta-feira (7), a partir das 21h, no canal no YouTube do artista. Ela, falando diretamente de Berlim, na Alemanha, onde mora atualmente. Juntos, eles vão comemorar uma série de coincidências: a obra foi gravada no Thatro Sete de Abril, o músico faz aniversário em 7 de abril e Angélica completa mais um ano de vida no dia seguinte. Porém, graças ao fuso-horário — com cinco horas de diferença —, ela vai estar aniversariando na Alemanha enquanto participa da transmissão.
— Deu uma coincidência bacana. Eu vou ter um bolinho com uma velinha aqui, ela vai ter um lá, e a gente vai comemorar o nosso aniversário ao mesmo tempo — adianta.
Até aqui
Inicialmente, o projeto havia sido aprovado no Natura Musical como espetáculo a ser apresentado em três capitais. Vitor estava trabalhando no repertório com um grupo de músicos e visava à gravação de um álbum de estúdio. Porém, veio a pandemia, e o processo precisou ser adaptado para a nova realidade, que não permitia aglomeração, fosse em um show com plateia ou em um estúdio de gravação, com toda a equipe que precisa se envolver. Vitor, então, optou pela realização de Avenida Angélica em um cenário que preservasse a saúde dos envolvidos: um teatro vazio.
— Considero esse o formato ideal para esse trabalho. Eu gosto do jeito que ele ficou. A situação, a circunstância, o fato de eu fazer naquele teatro, que é superimportante para mim, para a Angélica e para a cidade de Pelotas. Tem toda uma coisa de estar em casa, de tocar em um lugar que, para mim, é cercado por muita magia — conta o músico.
O próprio Vitor considera que o repertório da obra é muito coeso, pois todos os poemas presentes são de Angélica, que ele afirma ser dona de uma "poesia marcante" e escreve "textos realistas". O projeto Avenida Angélica acabou nascendo como um show, no Theatro São Pedro, e, para o músico, foi um processo natural que fosse assim que ele acabasse sendo registrado — mesmo que sem plateia.
A atmosfera cênica de Avenida Angélica foi criada por Isabel Ramil, filha de Vitor, que, além de incorporar uma luz sutil, contou com um velho ônibus em cujos bancos de trás, a certa altura, o músico passa a batucar. Esses momentos do show viraram uma série de vídeos que eram como segundas leituras dos mesmos poemas que foram musicados — as gravações serão disponibilizadas no YouTube também nesta quinta-feira. Além disso, o álbum sairá em mídia física, em data ainda não definida, em uma edição limitada idealizada pelo músico, que vai além de entregar um CD com as canções: será um registro histórico para colecionadores.
— Se tivesse uma gravação de estúdio, por mais cuidadosa que fosse, acho que não teria toda essa energia. Agora que passou tudo, fico feliz de ter corrido esses riscos de ter feito algo novo, que é cantar um repertório todo de uma poeta. E isso é uma novidade para mim e para o meu público, que espera ouvir certas coisas de mim — relata Vitor, que pretende agora levar a obra adiante em uma série de shows.
Segundo o pelotense, apesar de Avenida Angélica ser um passo inédito em sua carreira, quem ouvi-lo presenciará uma performance forte, em que a música e a poesia parecem ter nascido juntas, em um repertório que soa natural e, ao mesmo tempo, potente, graças ao trabalho "acachapante" de Angélica e de sua música, ambos em sintonia.
— Como estou ali em voz e violão, eu nunca fui tão Vitor Ramil quanto agora — finaliza.