Quem foi adolescente no começo dos anos 2000, muito provavelmente curtiu o som da banda O Surto com o seu hit A Cera. Mesmo que não soubesse muito bem disso. O primeiro motivo é que muita gente, em uma época em que a internet não estava na palma da mão, acreditava de pés juntos que quem cantava a música era o Charlie Brown Jr. E o outro é que o sucesso, em momento algum, cita o seu próprio nome na letra. Ele ficou conhecido informalmente como Pirou o Cabeção, trecho que faz parte do seu refrão "Um rosto lindo e um sorriso encantador / E um jeitinho de falar que me pirou, que me pirou o cabeção".
Pois é, agora, não tem como não lembrar. E nem como parar de cantarolar por um bom tempo. E está tudo bem. A Cera foi um fenômeno e uma das músicas mais executadas nas rádios brasileiras em 2001 — além de ser figurinha carimbada nos saudosos reprodutores de MP3 dos jovens descolados e que hoje já estão com seus 30 e vários. A banda, é claro, tornou-se centro das atenções naquela época e, com uma agenda de shows cheia, viu-se entre as mais requisitadas no país, colocando, por exemplo, mais de 200 mil pessoas para cantarem o seu maior hit no Rock in Rio.
— Na época, não dava para sentir que o sucesso era tanto. A gente trabalhava de segunda a segunda. Era legal, a música estava na rádio, a gente acompanhava, dizia "pô, tá indo bem", mas parar mesmo para curtir, não rolou. A gente não sentia tanto — conta o vocalista Reges Bolo.
— Mas 10 anos depois, você vendo a história, com as pessoas vindo comentar, que a gente viu o tamanho do impacto que foi — complementa o baixista Franklin Medeiros.
— Foi séria a coisa — reforça Bolo.
Produzidos, à época, pela fábrica de artistas pop Rick Bonadio, os integrantes do grupo ainda emplacaram outros sucessos, como Tudo é Possível e O Veneno. Tudo, aparentemente, ia bem, mas, em uma turnê pelo Japão, os membros do grupo acabaram encontrando desavenças. E, depois, veio a separação. Nas últimas duas décadas, pouco se ouviu falar da banda. O vocalista até seguiu com o nome O Surto, fazendo alguns shows, mas longe do mainstream. Agora, 20 anos depois da sua dissolução, a banda que nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 1994, está voltando. E escolheu Porto Alegre para recomeçar.
A reportagem de GZH foi até o Estúdio Soma, no bairro Partenon, local que está sendo a nova casa de produção da banda, para conversar com os membros do grupo — Bolo e Franklin Medeiros, membros da formação original, e dois novos, do Rio Grande do Sul, o guitarrista Alex Guterres e o baterista Guilherme Expoleta. Carimbando, assim, que a nova fase d'O Surto será uma mistura do rock cearense e do gaúcho.
Acaso do destino
A escolha de Porto Alegre como nova sede do grupo não se deu por conta das atrações que a Capital oferece, mas, sim, por um "acaso do destino". Bolo migrou para o Sul há cinco anos, por motivos pessoais e trouxe, com ele, o nome O Surto — que seguiu usando desde que o grupo musical se desfez. Aqui, ele se reuniu com Alex e Expoleta.
Do outro lado do Brasil, Franklin, durante a pandemia, começou a relembrar dos tempos áureos e sentiu vontade de voltar. Cantou para si o trecho "Acho que é hora de uma aproximação / De um diálogo sobre esta condição" e chamou o vocalista para a conversa. Se acertaram.
Com tudo no esquema, Franklin, que é casado com uma gaúcha que tem uma casa em Porto Alegre, não pensou duas vezes: arrumou os instrumentos dentro de sua Kombi e embarcou com a esposa e o cachorro para cortar o Brasil rumo ao seu novo e musical lar — a pista de skate da Orla também foi um chamariz, vale deixar claro.
Charlie Brown Jr. e "Síndrome de Anna Júlia "
Como dito no começo, muita gente acreditava que A Cera era uma interpretação de Charlie Brown Jr., dando ao grupo liderado por Chorão o crédito pelo sucesso. Bolo explica que a confusão se deu por uma série de motivos: a proximidade de lançamento do hit com Zóio de Lula, do grupo santista, pelas duas bandas terem a mesma gravadora, o mesmo produtor, o mesmo estúdio, o mesmo público e as vozes parecidas. Mas isso não incomoda os membros de O Surto. Pelo contrário.
— Isso foi muito bom, principalmente porque a gente teve uma progressão da música com essa nova geração que veio — reforça Bolo.
Porém, além de todas as coincidências que giram em torno das bandas, um detalhe foi essencial para que as duas tivessem essa associação toda. E é algo que a nova geração nem deve saber do que se trata: um arquivo em MP3 que surgiu no Napster. Nele, a canção da banda O Surto foi creditada como "Charlie Brown Jr. - Me Pirou o Cabeção" por alguém que, antes de fazer o upload, ouviu a música e achou que quem cantava era o Chorão. Ele se disseminou pelo país.
— Mas tá legal, estamos bem representados — pontua Bolo.
— O Chorão não achava ruim e nem achava que a gente imitava. Até porque, quem ouvia o disco d'O Surto, sacava a diferença do som bem nítida. Era só aquela música em específico que era a mesma balada de Zóio de Lula e o MP3 ajudou nisso — destaca Franklin.
De acordo com os dois membros mais antigos de O Surto, o sucesso todo de A Cera não era esperado nem pela gravadora. Segundo eles, o grupo, que apesar de ser forte no underground, era a terceira opção da EMI, depois de Charlie Brown Jr. e Tihuana.
— De repente, colocaram a música na rádio e capotou todo mundo. A gravadora ficou: "O que é isso? Quem é?". O sucesso da música foi maior que o da nossa imagem — comenta Franklin.
Na época, os membros da banda sentiram uma preocupação muito grande de que música sofresse da "Síndrome de Anna Júlia", uma vez que Los Hermanos teve bastante dificuldade de emplacar outra música de trabalho e buscou, por anos, se desvincular daquele sucesso.
— Mas a gente deu sorte de logo depois de A Cera conseguir virar outras músicas, como Hempadura, Tudo é Possível, Veneno, Zarolha e, assim, graças a Deus, conseguimos emplacar outras músicas. E, agora, estamos aí de Jah — conta Bolo, que ressalta não ter problema nenhum em cantar o seu grande sucesso em seus shows.
O futuro
Antecipado acima pelo vocalista de O Surto, a banda está com uma nova música de trabalho: Jah. Composta por Bolo, a música, segundo o autor, conversa com o verão e com o momento pelo qual o país vem passando.
— Acho que o Brasil está precisando de alegria, de felicidade. A música é um reggae e fala de Jah, que é o Deus do Reggae e, ao mesmo tempo, é uma brincadeira com "Jah fui" e "Jah voltei" também. Tem essa sacaçãozinha. E não foi algo como "ah, tem que ser essa", foi uma coisa mais de momento. Isso é uma coisa muito nossa: o que o coração tá falando, tá sentindo, a gente reflete. Assim como essa alegria da gente se reencontrar e voltar a trabalhar — destaca o músico.
E os integrantes do grupo garantem que já estão com outros novos trabalhos gravados e que irão acompanhar o movimento do mercado, lançando singles ou EPs. Ainda para 2022, deve ser produzido o acústico d'O Surto.
— Um acústico bem gravado, bem produzido, porque a gente merece — diz Franklin.
Vinte anos depois da separação, Bolo, que está com 50, garante que a disposição para tocar é a mesma:
— Na verdade, acho que até mais um pouco, porque a vontade é grande.
— A vontade é grande, o corpo é que não acompanha — brinca Franklin, de 48.
— Mas isso é um negócio muito engraçado. Chega a ser misterioso e mágico, porque, de repente, quando eu estou tocando, não sinto dor, não sinto cansaço, não sinto nada. O que a gente mais ama é cantar, tocar e compor e respirar cultura. Acho que, agora, depois de um bom tempo, estou sentindo esse elo novamente fechado para a gente voltar a trabalhar — garante Bolo. — O Surto é ideologia de vida. Não tem como parar.
E essa volta também contará com atuação do quarteto fora do estúdio. Após pequenas apresentações em São Paulo durante março, para "reaquecer" os motores, o grupo já tem data para o seu relançamento oficial, com um show na nova casa dos músicos: Porto Alegre. Mais especificamente no Barcelos Beer & Food (Rua Dr. Barcelos, 431 - Tristeza), no próximo dia 24, a partir das 21h. Os ingressos podem ser adquiridos na plataforma Sympla. E, claro, A Cera estará no repertório.