A guria que cresceu cantando Xuxa em ritmo de samba nos almoços de família, com arranjos improvisados pelos tios, teve agora 33 músicos envolvidos na gravação de seu primeiro disco — salto que ela se emociona ao perceber. Ela é Pâmela Amaro, cantora, compositora e atriz gaúcha de 35 anos que lançou nas plataformas digitais, na quarta-feira (13), o álbum Samba às Avessas, produzido com financiamento do edital Natura Musical.
O disco ganhou o mundo justamente no dia em que a baluarte Dona Ivone Lara completaria 100 anos. Uma data simbólica e que não foi escolhida por acaso. Foi porque o avesso do samba de Pâmela é também uma reivindicação da história feminina dentro do gênero musical, ainda dominado pelos homens.
— O avesso é olhar para dentro, para o outro lado, e esse lado é o lado da mulher. O samba às avessas é um samba diferente, um samba que vem mostrando o que a mulher sente, o que ela pensa, como ela toca e como ela interpreta — reflete a artista.
Nas 12 faixas, das quais nove são composições autorais da gaúcha, a mulher é quem dita a malandragem. É como ela avisa na canção Samba às Avessas, parceria com a veterana Nilze Carvalho: "Não sou Amélia, nem Anália, nem Copélia / E de sandália sambo todas / E ainda toco na cadência / Não lhe devo obediência / Agora só de sacanagem, meu bem / É a mulher quem vai ditar a malandragem".
Isso se nota desde o ponto Pedido a Osun, primeira canção do disco que exalta a orixá feminina das águas doces, até músicas como a engajada Deixa Que eu Vou te Contar, gravada com Maíra Freitas e Yzalú, que fala da potência das mulheres negras e a possibilidade de ocuparem todos os espaços que são seus por direito. Fala-se sobre amor, empoderamento e ancestralidade, os três temas centrais das composições, sempre pelo ponto de vista da mulher.
É uma virada de chave. E essa decisão de usar seu primeiro disco para reverter a lógica ainda majoritariamente masculina do samba, explica Pâmela, vem de inquietações antigas suas em relação a uma parcela das composições do gênero — assinadas, é claro, por homens.
— Eu sempre me perguntei por que a mulher negra é tão desrespeitada no cancioneiro popular. Por que a gente já alcançou tantos espaços e as músicas seguem sempre trazendo "a nega"? Aquela nega que não tem nem nome, a nega que não quer trabalhar, a barraqueira, o objeto sexual dos homens, a que tem que servir... A gente é mais do que isso. A gente pensa, a gente tem nome, tem história, tem dores, tem alegrias... Tentei trazer no disco essa complexidade — afirma.
Samba dos pampas
Mas não é só a lógica masculina que o samba de Pâmela Amaro vira do avesso. É também a ideia de que o Rio Grande do Sul não é terra de tambores quando na verdade, aponta a artista, vem daqui uma das tradições sambistas mais fortes do Brasil.
Pâmela almeja que o resto do país ouça seu disco e saiba que ali está um exemplar do samba que há tempos se cria, se canta e se toca no Rio Grande do Sul — e que, em sua visão, o Estado pouco faz questão de externar.
— As pessoas não esperam que tenha samba aqui porque o Rio Grande do Sul sempre se projetou europeu. Mas eu quero mostrar que o Rio Grande do Sul não tem uma única cultura dita tradicionalista, quero mostrar que nós temos muitas tradições e que todas podem ser reconhecidas — defende.
Faz isso, sobretudo, por meio do arranjo de instrumentos ancestrais na cultura afro-gaúcha, mas pouco utilizados no samba do restante do país — como o sopapo cunhado por Mestre Giga Giba. Essas incorporações foram feitas a partir de um trabalho de pesquisa entre muitas mãos, encabeçado principalmente por Pâmela, Tuti Rodrigues — que divide com ela produção musical e arranjos, além de assumir a direção —, Nilze Carvalho, que orientou Pâmela em toda a concepção do álbum, o arranjador Max Garcia, que completa o trio ao lado de Pâmela e Tuti, e o diretor artístico Tiago Souza.
O resultado são sonoridades que remetem aos terreiros do batuque e ao jongo das comunidades negras rurais, referenciando também a formação indígena do Rio Grande do Sul. E sem deixar de ser um samba universal, capaz de embalar uma roda em Porto Alegre ou em Salvador.
— Está na hora de quebrarmos esse jejum e mostrarmos o samba do Sul. Acho que estou experimentando dar um traço para esse samba que é produzido aqui, aí ficou um disco que as pessoas escutam e veem que ele é muito diverso. Acho que consegui mostrar também o que é a minha cara, o que gosto e quem sou: essa Pâmela multifacetada que escuta e se referencia em muitos ritmos — resume.