Por Everton Cardoso *
O que vivemos no domingo e na segunda-feira (17 e 18/10) sem dúvidas é digno de constar na memória e na história não só da cena operística de Porto Alegre, mas do país. A montagem de O Engenheiro levada ao palco do Theatro São Pedro pela orquestra daquela casa é repleta de méritos. Comecemos pelo fato de ser essa a estreia da composição de Tim Rescala, ou seja, pela primeira vez foi apresentada em público. Ainda que seja algo visto na capital recentemente – lembremos, por exemplo, de O Quatrilho, de Vagner Cunha, que estreou em 2018 –, ter evidências concretas de que há movimentações que renovam o repertório lírico é uma alegria ímpar e por si só já consiste em algo digno de celebração. Isso num país como o Brasil, onde a produção cultural vem sendo fruto de esforços da classe artística.
Mais ainda, essa produção é mais um daqueles casos de trabalho em cooperação entre instituições que mostra o quanto esse é um caminho fundamental para o êxito na cena cultural brasileira: é a primeira produção da Academia de Ópera Sinos, do Sistema Nacional de Orquestras Sociais. O projeto é encabeçado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Funarte, órgão do governo federal destinado ao fomento da produção artística. Estarem participando o Theatro São Pedro e sua orquestra é, sem dúvida, também mais um motivo para celebrar. Há que se dizer, porém, que não há nenhuma surpresa, já que a direção artística de Evandro Matté já vem levando, há algum tempo, a Ospa para esse lugar de instituição articuladora e promotora da cultura no Rio Grande do Sul. Ver a Orquestra Theatro São Pedro ir pelo mesmo rumo, portanto, é animador.
E se em todas as partes do mundo as orquestras e companhias de ópera têm buscado formas de se aproximar dos públicos, a escolha de O Engenheiro é emblemática de que isso não parece possível apenas com ações pontuais; é preciso pensar em projetos que contenham essa aproximação em seu cerne. A própria opção pela obra e a forma como foi levada à cena fazem o conjunto orquestral da centenária casa de espetáculos sul-rio-grandense se conectar de forma potente com o tempo em que vivemos. O personagem central da história é André Rebouças (1838-1898), engenheiro e inventor cujas crenças políticas nos parecem, aos olhos do hoje, contraditórias: negro, era abolicionista e monarquista com igual fervor.
O libreto da ópera está ambientado na noite de 15 de novembro de 1889, quando a princesa Isabel e o seu marido, Conde D'Eu, sabem dos acontecimentos em curso. Diante da iminência do destronamento de D. Pedro II e de sua herdeira, chamam o amigo Rebouças para com ele se aconselharem. O compositor usa bem os momentos de canto para assinalar o quanto o personagem protagonista não é plano ou linear, mas alguém com idiossincrasias, contradições e imperfeições que são, no fundo, traços humanos e que historicamente têm rendido belíssimas histórias em forma de ópera.
Aliás, quando o barítono David Marcondes canta a ária na qual o personagem título conta sobre o seu sonho de criar uma fazenda nacional na qual os escravizados recém-libertos e colonos pudessem trabalhar, tivemos uma mostra de como o cantor-ator é capaz de não só de cantar muito bem, mas de criar nuances e sutilezas. Isso deu um tom adequado ao sujeito que é um emblema quando se trata de pensar em um projeto para aqueles que não só foram deixados à própria sorte com o fim da escravidão no país como foram estigmatizados e mesmo cerceados.
Também Yasmini Vargaz, a soprano que deu vida à princesa Isabel, teve atuação marcante: o canto foi potente e cativante; e a interpretação deu vida a outra personagem contraditória de nossa história – terá mesmo ela sido a "Redentora" por ter assinado a Lei Áurea ou apenas alguém que livrou a oligarquia nacional dos escravizados pelos quais deveriam ter sido responsáveis? Da mesma forma, as performances dos demais integrantes do elenco, o desempenho da orquestra, o figurino, a cenografia e a iluminação também foram indicativos de que houve muito esforço e um conjunto de escolhas que levaram a resultados de grande qualidade.
Ao final da apresentação, quando o elenco todo se enfileirou para receber os aplausos, se tornava ainda mais concreta e evidente a importância daquele momento: das nove pessoas em cena, cinco eram negras, entre elas o protagonista. Pois é essa a mudança que já vemos se operar diante de nossos olhos – e que desejamos que se aprofunde. Nos últimos anos, a produção audiovisual de temáticas históricas tem estado envolta em debates sobre questões étnico-raciais e representatividade. A montagem de O Engenheiro, por isso, é uma amostra de que todos os envolvidos com o que vimos no Theatro São Pedro fazem uma contribuição ímpar para que a ópera, essa expressão cultural muitas vezes vista como restrita, se aproxime de fato das pessoas e se conecte com o nosso tempo. Aplausos, aplausos, aplausos!
* Everton Cardoso é jornalista e crítico