Por Everton Cardoso *
Quando Carla Domingues entrou em cena para iniciar o segundo ato da ópera cômica O Acordo Perfeito, no domingo (26), na sala de concertos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), o longo e vistoso vestido vermelho já anunciava que logo veríamos o ponto alto da noite. A ária da personagem Coraline, uma cantora lírica que abandonou a carreira de sucesso na França para casar com um homem rico, foi uma mostra do quanto esta obra do compositor francês Adolphe Adam (1803-1856) é uma oportunidade para que sopranos coloratura façam exibições do alcance e da profundidade de seu canto. Carla correspondeu à expectativa, afinal, ainda temos na memória seu desempenho como a personagem Norina, que interpretara na ótima montagem de Don Pasquale que a Ospa levou à cena em 2016, quando da retomada das montagens encenadas pela instituição. Na letra desse trecho, uma reflexão da protagonista que nos oferece elementos para pensarmos sobre o lugar das mulheres. “Em que perigo ela se encontra?”, diz o canto, ainda sinalizando para um papel feminino que carrega muito da submissão mas que também já traz alguma possibilidade de ruptura.
É muito surpreendente que uma obra que estreou em 1849 apresente um desfecho tão inusitado, num pacto da protagonista com seu marido, Belflor, e seu antigo amor, Tracolin. O triângulo amoroso que se resolve com uma espécie de trisal ao mesmo tempo deixa a mulher à mercê dos demais personagens, mas já aponta para um lugar que muito difere das heroínas mais típicas. Talvez essas questões, inclusive, pudessem ter estado mais presentes no diálogos, adaptados aos tempos atuais e falados em português, entremeando as partes cantadas, estas em francês como na versão original. Fazer humor em 2021 é terreno fértil, pois, como temos visto, sobretudo no audiovisual, personagens em geral legados a posições de sujeição a dominantes têm se mostrado insubordinados. A desconexão com a mudança dos tempos por parte de personagens em geral masculinos, brancos e privilegiados é o que tem ocasionado os momentos de maior diversão, movimento este levado a cabo por uma nova e jovem geração de humoristas da qual o Porta dos Fundos parece ter sido um dos grandes disparadores.
O baixo-barítono Daniel Germano, no papel do fazendeiro rico, marido da cantora, e o tenor Giovanni Tristacci, interpretando o flautista que era o grande amor de Coraline, também deram ao canto belas interpretações. Aliás, nos figurinos masculinos Antônio Rabàdan acertou em cheio no tom cômico. O impacto do casaco de peles que vestia Giovanni ao entrar em cena pela primeira vez e o traje listrado combinado com sapatos bicolores usados por Daniel eram a maior expressão cênica da comicidade típica desse gênero de espetáculo.
Sob a regência de Evandro Matté, mais uma vez o conjunto sinfônico mostrou que dá conta de apresentar peças musicais de diferentes gêneros com interpretação de qualidade. Mais do que isso, a empreitada a que se lançou a Ospa com esta montagem sinaliza, outra vez, o papel protagonista e a relevância fundamental que a instituição tem no cenário cultural do Rio Grande do Sul. Juntar talentos musicais como estes e ainda lançar desafios como o da direção cênica a Flávio Leite – normalmente visto cantando, em cena – mostra que a disposição a movimentar é o grande mérito desse caminho de retomada da cena operística local – aqui, pensando tanto no retorno às atividades depois da pandemia quanto no projeto a que se propôs a orquestra desde quando, há cinco anos, começou a encenar uma obra de repertório lírico por ano.
* Everton Cardoso é jornalista e crítico