— Eu vim da quebrada e hoje quero fazer da trompa um instrumento de ascensão social — diz Israel Oliveira, músico da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) que foi um dos dois vencedores do Prêmio Punto 2021, entregue pela International Horn Society. O alemão Christoph Eß, da Orquestra de Bamberg, foi o outro ganhador da distinção, que é uma homenagem ao tcheco Giovanni Punto (1746-1803), trompista, compositor e maestro.
Oliveira foi o segundo músico latino-americano a ser lembrado pela premiação, criada em 1985 — o primeiro foi o também brasileiro Marcus Bonna, de Belém do Pará, em 2017. A distinção reconhece trompistas que contribuíram de modo relevante para a arte do instrumento. A indicação é feita anualmente pelos conselheiros da associação e a escolha é feita pela maioria de votos.
O trabalho de Oliveira em prol da trompa que o levou à láurea começou juntamente com a pandemia de covid-19. Em março de 2020, o músico, querendo dar continuidade aos ensaios, mesmo à distância, criou o projeto Coronahorns — horn é o nome da trompa em inglês —, que reuniu trompistas de todo o continente sul-americano e de Cuba para tocarem juntos, virtualmente.
O projeto
O trompista disse que teve a ideia de criar o projeto ao deparar, em uma reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo, com a onda de depressão pela qual os jovens estavam passando no início da pandemia. A iniciativa deu tão certo, agregando centenas de pessoas, que originou o Latinoamericahorns, primeiro coletivo de trompa na América Latina.
O coletivo, idealizado por Oliveira, teve suporte de uma equipe voluntária formada por: Nadabe Tomás, Gabriella Ibarra, Gleice Viana, Jorge Montoya e César Ahumada, além de Cláudia Antonini, esposa do trompista premiado e que o ajudou desde o começo da iniciativa. A ideia deles era estimular, de forma virtual, a prática, a troca de conhecimentos e a celebração do instrumento. O trabalho, porém, não foi fácil.
Relacionar-se com músicos que moram na Europa, em outro fuso horário, por exemplo, demandava atenção especial na madrugada, o que quebrava noites de sono, relembra Oliveira. Além disso, para contemplar os artistas cubanos que queriam consumir os conteúdos produzidos pelo Latinoamericahorns, o coletivo precisou gravar as lives no YouTube, uma vez que os moradores do país não possuem acesso a plataformas de transmissão ao vivo como o Zoom.
O esforço todo valeu a pena. Dentro do projeto, jovens talentos foram descobertos por meio de concursos e, também, houve encontros de pessoas que não se viam há anos por meio das videoconferências. Além disso, a iniciativa inspirou outros projetos, como um no mesmo formato, porém, tendo o instrumento fagote como peça principal, na Paraíba.
— Nossos vizinhos latinos não se comunicavam conosco. A gente não conhecia os compositores deles e eles não conheciam os nossos. Foi muito mágico quando a gente começou a ouvir todas aquelas variedades de músicas. Eu até me emociono de lembrar. Hoje é normal essa diversidade toda para a gente e, nos grupos, agora mesmo, estão trocando materiais — conta o trompista, com orgulho.
Da quebrada
Paulista criado na Cohab, Israel Oliveira viu o seu destino mudar graças à trompa. Vindo de família humilde e que, segundo ele, não entendia muito bem a relevância da música erudita e o seu poder transformador, encontrou o instrumento que seria a sua grande paixão nas mãos de um "primo emprestado", Eraldo Alves, que vivia na mesma comunidade que ele.
— Quando eu vi ele tirando a trompa do estojo, pela primeira vez, parecia que ele estava erguendo ouro, uma joia. Me lembrar daquela imagem, de como a trompa reluzia, já me vem uma emoção muito forte. Eu olhei para ele e disse: "Cara, eu queria tocar isso daí" — relembra.
Alves tinha o sonho tão grande de ser tocador de trompa que acabou contaminando Oliveira. O atual músico da Ospa, então, decidiu ir atrás do seu novo objetivo e ter uma joia daquelas para chamar de sua. Aos 16 anos e com um talento ímpar, chamou a atenção do professor Ozéas Arantes, que decidiu lhe ensinar a arte do instrumento do sopro. Porém, sem apoio familiar, parou aos 17. Foi para a Aeronáutica, casou, teve filho e se viu, aos 21 anos, vazio sem a trompa. Decidiu voltar.
Arantes lhe deu uma nova chance, mas com cobranças redobradas. Todas elas superadas por Oliveira nesses 28 anos como músico. Integrante da Ospa desde 2004, atualmente ele é trompa solo e professor do instrumento no Conservatório Pablo Komlós. Atua em formações orquestrais, música de câmara, bandas sinfônicas e festivais no Brasil e na América Latina.
Para Oliveira, a trompa ainda é pouco conhecida, diferente do trompete ou do trombone, mas ele pretende, agora, com a visibilidade que o Prêmio Punto deu para o seu projeto, transformar o instrumento em mais uma ferramenta musical de ascensão social. Segundo ele, com um possível apoio do governo, muitos jovens talentos poderiam encontrar na trompa um novo futuro, assim como ele.
— Podemos ter uma centena de trompistas espalhados no Rio Grande do Sul, mas 98 deles não têm dinheiro para comprar o instrumento. A minha missão é fazer com outras pessoas o que o meu professor fez comigo — conta o premiado trompista paulista, acolhido no Rio Grande do Sul e com raízes espalhadas por toda a América Latina.
As lives com apresentações do grupo criado por Oliveira podem ser conferidas no site do coletivo.