Por Luísa Kiefer
Jornalista e curadora independente, doutora em História, Teoria e Crítica de Arte pela UFRGS
Muito tem se falado sobre as mudanças que estão ocorrendo na capital gaúcha. Seja por meio de investimentos públicos, como a nova orla do Guaíba, que inegavelmente trouxe melhorias visuais e funcionais, seja através de iniciativas privadas voltadas para inovação, tecnologia e comércio. As novidades demonstram o potencial empreendedor da ponta sul do país, a nossa capacidade de estar à frente de grandes ideias, de transformar uma paisagem linda e esquecida em local revitalizado e pulsante. Quem não fica feliz e orgulhoso com isso?
A mais recente delas, celebrada como motivo de altivez para os gaúchos, é a construção de uma roda-gigante na orla do Guaíba. Abandonado pela prefeitura, o projeto voltou à pauta por iniciativa do consórcio privado que assume a administração do Parque Harmonia. A atração, que supostamente aumentará a autoestima local, tem custo estimado de construção entre R$ 40 milhões e R$ 60 milhões.
Logo ali, em trecho já inaugurado da Orla, está a nossa querida Usina do Gasômetro. Em 2016, um dos espaços culturais mais frequentados da cidade, como constatou uma pesquisa feita pelo Instituto Odeon, teve um projeto de reforma aprovado. O valor dos investimentos era de R$ 40 milhões, mas acabou reduzido para pouco mais de R$ 10 milhões. O projeto apresentado pelos arquitetos sonhava em entregar a Porto Alegre um espaço cultural de alto padrão, com lugar para exposições, shows, teatro, cinema, salas de ensaio, café, seguindo a solicitação da prefeitura de inaugurar ali uma Tate Modern gaúcha. Com a limitação financeira, a proposta acabou adaptada apenas às necessidades mais urgentes. Estamos em 2021 e a Usina segue fechada.
Indo um pouco mais adiante, temos a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Sem sede desde 2008, apenas em 2018, através de esforços mútuos do poder público e da sociedade civil, que incluíram uma campanha de financiamento coletivo, foi possível inaugurar a Sala de Concertos da Casa da Música da Ospa, a primeira fase de um complexo musical que demora a sair do papel. O primeiro projeto de Sala Sinfônica, localizado em terreno na orla, data de 2012 e previa um investimento de 46 milhões. Por falta de verba, os alicerces da obra foram abandonados em favor de uma solução paliativa. Para quem não sabe, a nossa orquestra é uma das mais antigas do país em atividades ininterruptas, e deveria ser motivo de exaltação para os gaúchos. A Casa da Ospa até o momento usou uma verba de pouco mais de R$ 8 milhões.
Agora, mudando de bairro, o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), que possui mais de 1,3 mil obras em seu acervo, passou quase 30 anos sem casa própria. Instalado desde sua inauguração, em 1992, em salas emprestadas da Casa de Cultura Mario Quintana, finalmente recebeu, em 2019, um terreno para chamar de seu, localizado no Quarto Distrito. Parte da verba necessária para a reforma do local foi levantada através de leilões organizados pela Associação dos Amigos do MACRS em parceria com a Secretaria da Cultura do Estado. Os artistas participantes doaram suas obras para ajudar a causa.
Os investidores e empreendedores da cidade deveriam lembrar das artes, dos espaços culturais, da necessidade de oferecermos aos porto-alegrenses e aos turistas atrações culturais com programação regular e consistente, com infraestrutura. Não é por falta de espaço, afinal os antigos armazéns que abrigavam a Bienal do Mercosul e a Feira do Livro de Porto Alegre seguem, porém agora povoados apenas por lazer e consumo. É possível que a autoestima e o orgulho sejam construídos apenas em cima de bens tão voláteis?
Em um Brasil tão grande e complexo, atualmente esvaziado dos valores humanos mais básicos, é preciso entender a importância da cultura. As artes são um patrimônio do país, algo que representa, que enaltece, que valoriza o que é próprio daqui. Que faz refletir não para subverter, mas para estimular o pensamento crítico, para fazer a mente e o espírito crescerem. Lá fora, em outros continentes, a iniciativa privada está presente em museus públicos, mantém teatros, orquestras, apoia artistas. A cultura é vista como uma possibilidade de investimento tão boa quanto uma roda-gigante.