"A cara do Brasil" é uma das expressões mais recorrentemente usadas para falar da capa de Clube da Esquina, disco de 1972 estabelecido como um dos clássicos da música brasileira. A imagem, tão reconhecida quanto as próprias canções, exibe duas crianças sentadas em uma estrada de terra: uma delas, descalça e com um pedaço de pão na mão; a outra, olhando desconfiada para a câmera.
Por anos, a crença popular era de que aqueles garotos eram Milton Nascimento e Lô Borges, principais nomes por trás das canções de Clube da Esquina. Na verdade, eram Antônio Carlos Rosa de Oliveira - o Cacau -, e José Antônio Rimes - o Tonho -, dupla que passou quatro décadas sem saber que estava numa das capas de disco mais icônicas do país. Desde 2012, eles pedem na Justiça R$ 500 mil por danos morais e uso indevido da imagem.
Os alvos do processo, que tramita no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, são Milton, Lô, a gravadora EMI, que lançou o disco; e a editora Abril, que reeditou o álbum como parte de uma coleção em 2012. A EMI foi incorporada pela Universal, que, caso a Justiça aja de forma semelhante ao famoso caso de João Gilberto, pode herdar o processo.
Por enquanto, a EMI se defende por conta própria, e pede a citação de Ronaldo Bastos, um dos compositores que atuou com o Clube da Esquina, no processo. A gravadora alega que, em contrato assinado em 2007, ele cedeu à empresa os direitos do material gráfico do álbum. Já a Abril afirma que tem autorização da Universal - que já era a responsável pelo disco - para reproduzir a capa.
Tonho e Cacau entraram na Justiça em dezembro de 2012, meses depois que foram localizados pelo jornal Estado de Minas para uma reportagem que recriou a capa de Clube da Esquina, 40 anos depois.
— Nunca soube disso. Foi ela (a jornalista, Ana Clara Brant) que me descobriu — diz Tonho. — Fui correndo no advogado e contei a história todinha. Acho que eles não podiam ter feito isso comigo. Poderiam ter avisado meu pai ou minha mãe. Não ajudaram em nada.
Tanto Milton e Lô quanto a Universal não responderam aos pedidos de entrevista. À Justiça, a defesa dos cantores alega que o prazo para a prescrição de indenizações deste tipo atualmente é de três anos, e não 40.
Também afirma que não era responsabilidade de Milton e Lô a "publicação das fotos nas capas do LP e CD" e que eles "foram contratados (pela gravadora) somente para interpretar canções e não para produzir, fabricar e comercializar exemplares desses produtos."
Já a EMI chama o valor cobrado pela dupla de astronômico e afirma que não há violação do direito individual à imagem, pois a foto da capa está "totalmente desvinculada" de suas imagens atuais. A gravadora ainda cita que os males de que Tonho e Cacau se queixam "não são capazes de trazer qualquer sofrimento moral".
O juiz da comarca de Nova Friburgo, Marcus Vinicius Miranda Gonçalves da Silva de Mattos, em decisão de 2019, determinou a citação dos denunciados no caso - Ronaldo Bastos e a Universal, então, devem apresentar suas defesas.
Criação
A foto da capa de Clube da Esquina foi tirada em 1971, em uma área rural nos arredores de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Tonho e Cacau, que tinham entre sete e oito anos de idade, estudavam juntos, e seus pais trabalhavam como campeiros em uma fazenda na região.
— A gente jogava bola de gude, peão, futebol, essas coisas de criança. Ficava brincando na beirada da rua — lembra Tonho. — Aquele (na foto) é o lugar em que a gente brincava. Éramos da roça, muito humildes. Não sabíamos o que passava na mídia, nada.
O autor da foto icônica, o pernambucano Cafi, morreu no início de 2019. Em 1971, ele estava passeando na região com Ronaldo Bastos em um Fusca, quando avistou os meninos.
— Foi como um raio — disse Cafi ao Estado de Minas em 2012, contando também que Milton adorou a imagem.
Tonho não recorda o momento exato da foto e diz que perdeu suas fotos de criança na enchente que assolou Nova Friburgo em 2011. Ele diz que tanto Milton quanto Lô sabiam quem eles eram, por frequentarem a fazenda Soledade, propriedade da família de Ronaldo Bastos, onde hoje se produz cachaça.
Beto Guedes, um dos contribuintes do Clube da Esquina, já publicou no Facebook, em 2018, uma foto antiga ao lado de Bituca, indicando na legenda que eles estavam na fazenda.
— Eles não conversavam muito com a gente porque viviam no meio dos fazendeiros. Nós éramos pobres, mas não era para eles que meu pai trabalhava, era em outra fazenda.
Quando Clube da Esquina foi gravado, Lô Borges estava morando com Milton no Rio. Bituca já passava dos 30 e tinha três álbuns lançados quando foi com o parceiro, então chegando aos 20 anos de idade, para uma casa em Mar Azul, na praia de Piratininga, Niterói, para gravar o disco.
O álbum, influente não apenas no Brasil, mas entre fãs de música e artistas de todo o mundo, resgatou os encontros da famosa turma na esquina das ruas Divinópolis com Paraisópolis, no bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte, nos anos 1960. Além de Milton e Lô, que gravaram o disco, letristas como Márcio Borges - irmão de Lô -, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, além de Beto Guedes, entre outros, faziam visitas à dupla em Mar Azul.
Antes de 2012, Tonho nunca havia escutado uma música de Milton Nascimento, Lô Borges ou de Clube da Esquina.
— Depois, eu ouvi o disco. Achei bom, muito bom. Não lembro os nomes, mas tem muita música boa ali. A foto da capa é linda, show de bola.
Impasse
Na prática, o processo está parado há um ano. Milton e Lô dizem que a responsabilidade é da EMI, que passa a bola para Ronaldo Bastos. A Abril, por sua vez, diz que a a Universal é quem deve responder, já que autorizou o uso da foto no relançamento em CD de 2012.
O advogado de Tonho e Cacau, José Carlos Alves, acredita que o excesso de citações é uma estratégia para atrasar o processo. A defesa da EMI entende que não há risco da gravadora ser condenada, devido ao tempo de prescrição.
Hoje, Cacau trabalha como jardineiro e Tonho, como repositor em um supermercado. Eles têm 56 e 55 anos e seguem morando em Nova Friburgo. Segundo Tonho, a dupla está disposta a fazer um acordo, mas até hoje nunca conseguiu ter contato com os músicos:
— Eles venderam muito disco, mas sem a autorização de ninguém. A obrigação era falar com a gente, dar um dinheiro pra nos ajudar em alguma coisa — diz. — Por que não fizeram isso? Sou pobre, tenho seis filhos para criar. Foi muita mentira comigo. Não ajudaram em nada.