Por Ana Nejar
Jornalista. Em formação em Psicanálise no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
A música como manancial de afeto, como propulsora do desejo ou como resposta libidinal. Dos sentidos mais apurados, a audição teria nas canções o despertar de angústia ou apaziguamento. Considerada atividade de sublimação, está inscrita como uma das mais primitivas formas de linguagem.
É mediante um acorde que algo se rompe, se abre ou se deflagra na vida do ouvinte. Desde cedo, percebe-se a fala da mãe, dos familiares, a alternância de tons graves e agudos. A voz é a primeira música. O embalo no colo materno, a melodia durante o aleitamento, as conversas e os ritmos que se sobressaem no ventre e que tocam (e moldam) o sujeito. Afinal, de onde vem essa saudade de ouvir? E para onde ela nos leva?
A dúvida surgiu após um retorno a ritmos como forró, carimbó e frevo, que acompanharam parte da minha infância no Nordeste e que, passadas quatro décadas, ainda são recordados com o movimento de mãos e pés, quando não envoltos na letra completa de uma língua desconhecida à época e, mesmo assim, carregada de intimidade. Também ao deparar com o livro Nascer Leva Tempo, de Luís Rubira, que aprofunda a obra de Vitor Ramil, seus versos, suas melodias. O retumbar passa a ser revirado, brota no inconsciente, é revisto e ressignificado.
E aqui cabe uma constatação: qual de nós nunca cantou uma música com a letra errada durante muito tempo?
“A gente ouvia os discos de tango do meu pai com ele cantando junto, viajava muito a Montevidéu para ir em casas de tango ver ele dançar (...). E as relações sempre eram muito emocionadas: o pai não conseguia cantar algo sem chorar. Ele cantava, ficava com os olhos cheios de água... A gente passava para outra música. Música, aqui em casa, sempre foi um negócio muito emotivo, envolvido com muito choro. Por isso minha música começou muito introspectiva.”
(Vitor Ramil, no livro Nascer Leva Tempo, de Luís Rubira)
Os desdobramentos do impacto da audição, especificamente a música, tiveram nessa abordagem um desafio: como inscrevê-la entre os conceitos psicanalíticos? Existe algum lugar onde ela se manifeste de forma mais abrangente? De uma maneira geral, pode-se dizer que se enquadra em dois principais: traço mnésico e representação como traço mnésico, que é a forma como os acontecimentos se inscrevem na memória. Os traços mnésicos são depositados em diversos sistemas; subsistem de forma permanente, mas só são reativados depois de investidos.
Na concepção freudiana da amnésia infantil, se não nos lembramos dos acontecimentos dos primeiros anos, não é por falta de fixação, mas devido ao recalque. De modo geral, todas as lembranças estariam de direito inscritas, mas sua evocação depende da forma como são investidas, desinvestidas, contrainvestidas. Estaria aí a justificativa para a facilidade em rememorar cantigas, hinos, marchas e ritmos que nos foram apresentados em tenra idade? Ou o seu oposto?
Temos, então, a definição de “representação”, termo clássico em filosofia e em psicologia para designar aquilo que se representa, o que forma o conteúdo concreto de um ato de pensamento e em especial a reprodução de uma percepção anterior. Ainda sobre representação, importante traçar a diferença entre “representação de coisa”, que seria essencialmente visual, enquanto a “de palavra” é essencialmente acústica. A representação é aqui nitidamente diferenciada do traço mnésico: ela reinveste e reaviva este. As representações de palavra são introduzidas como concepção que liga a verbalização e a tomada de consciência.
Há quem já tenha sentido aquele arrepio de pele ao ouvir uma canção. Há quem, ao lado desse alguém arrepiado, não esboce reação. O que está por trás de tanta emoção e até da falta dela senão o que temos guardado? É comum que se recorra a um repertório para animar uma reunião, um encontro, lançar-se sem piedade em karaokês, rir até travar os carrinhos numa roda animada de viola. Porém, também pode-se recorrer a uma sequência que leve direto a um período de desilusão afetiva, mesclando melancolia e saudade. A música, sempre ela, a consolar os amantes, a definir o enlace, a imortalizar uma união. E quem não tiver uma música de fossa amorosa que atire a primeira pedra.
A arte da sublimação
Enquanto nos sonhos encontramos uma carga infinita de imagens, é na música que aflora um dos sentidos mais claros de identificação. É na música que está canalizada boa parte da sublimação. O conceito adotado por Freud, a partir de sua imersão na obra de Goethe, serve para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam seu elemento propulsor na força da pulsão sexual, sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa a objetos socialmente valorizados.
Todas as lembranças estariam de direito inscritas, mas sua evocação depende da forma como são investidas, desinvestidas, contrainvestidas. Estaria aí a justificativa para a facilidade em rememorar cantigas, hinos, marchas e ritmos que nos foram apresentados em tenra idade?
Outras formas de arte usam a música como braço. O cinema é um dos expoentes. Certos filmes podem causar estranhamento ou apaixonamento imediatos. E o motivo pode estar mais em sua trilha sonora do que no desenrolar do roteiro propriamente dito.
Essa percepção subliminar é comumente explorada na propaganda, que se esbalda na utilização de hits antigos, geralmente dos anos 1970 e 80, por exemplo, nos comerciais de veículos. Da propaganda é possível transitar para as séries de streaming ou os inúmeros eventos festivos que rodeiam as agendas locais. As festas dos anos 1980 viraram um marco em casas noturnas. É como se aquela década estivesse vívida aos que oscilam entre os 40 anos ou mais. De bregas a um repertório de rock variado, o que está contido é seu significado. O corpo que se solta nas pistas de dança não é mais jovem, porém baila sob um prazer remoto, uma excitação. Seria a sensação de retorno à adolescência?
Na atual era de facilidades da internet, os filhos dessa geração que sacoleja nas Balonês já estão em outra frequência. Adeus à espera pela música favorita no rádio, a gravação das fitas K-7 ou o cuidado com a agulha para não riscar o LP no toca-discos (ainda que a onda vintage tenha trazido de volta os aparelhos 3 em 1 e os vinis para o século 21).
No Spotify, temos como sugestões de playlists uma inúmera seara: músicas para dormir, para correr 10 quilômetros, para arrastar o chifre, para faxina, para rebolar, para dirigir, músicas tristes pra você chorar, músicas para transar! O que denota a capacidade narcísica de cada um em acreditar que sua seleção musical será melhor do que a do outro, apesar de conter ritmos parecidos. O que está em jogo é a quantidade de seguidores a partir do batismo criativo de cada uma delas.
Identificação coletiva
Mas por que alguns acordes mal são iniciados e essa sensação de preenchimento é acionada? Estariam latentes as vivências afetivas e sem elas não haveria qualquer tipo de emoção ou reação ao que se ouve? Pode-se citar, ainda, cânticos dos estádios de futebol, bem como canções utilizadas em marchas políticas e manifestações de gênero. Há uma identificação coletiva. Uma irmandade ritmada.
É a memória emoldurando o quadro de lembranças. A capacidade de codificar, armazenar e evocar as experiências, as impressões e os fatos que ocorrem em nossas vidas. Envolve conhecimentos e práticas sociais e culturais (costumes, valores, linguagem, habilidades artísticas, conceitos e preconceitos, ideologias, rituais etc.). Daí sua importância fundamental. Sem ela, os grupos sociais perdem sua identidade básica, a possibilidade de perceber o sentido de suas existências, a gratidão e a crítica em relação ao passado e a esperança e prudência em relação ao futuro.
Perceber o sentido de suas existências: é a partir dessa frase que recorro a Deixando o Pago, música de Vitor Ramil composta a partir dos versos de João da Cunha Vargas e assim explicada pelo autor pelotense:
Comecei a ler Deixando o Pago e me apaixonei, me identifiquei com a forma que o João Vargas constrói os poemas: aquela forma longa, devagar, que é meu estilo de composição. Bom, peguei o poema e a música saiu direto, naturalmente. Terminei de compor e caí em prantos. Chorei aí nesse sofá. Foi uma descoberta. Foi como se eu tivesse tido um contato com o João. Fiquei emocionado mesmo. Eu estava conseguindo encontrar a figura mítica do gaúcho que ele criava.
É com Vitor Ramil que tento responder à pergunta feita inicialmente: Afinal, de onde vem essa saudade de ouvir? E para onde ela nos leva? “Eu vou voltar pra querência/ lugar onde fui parido.”
Deixando o Pago
Letra de João da Cunha Vargas/música de Vitor Ramil
Alcei a perna no pingo
e saí sem rumo certo
olhei o pampa deserto
e o céu fincado no chão
troquei as rédeas de mão
mudei o pala de braço
e vi a Lua no espaço
clareando todo o rincão.
E a trotezito no mas
fui aumentando a distância
deixando o rancho da infância
coberto pela neblina
nunca pensei que minha sina
fosse andar longe do pago
e trago na boca o amargo
dum doce beijo de china.
Sempre gostei da morena
é minha cor predileta
da carreira em cancha reta
dum truco numa carona
dum churrasco de mamona
na sombra do arvoredo
onde se oculta o segredo
num teclado de cordeona.
Cruzo a última cancela
do campo pro corredor
e sinto um perfume de flor
que brotou na primavera
à noite, linda que era
banhada pelo luar
tive ganas de chorar
ao ver o meu rancho tapera.
Como é linda a liberdade
sobre o lombo do cavalo
e ouvir o canto do galo
anunciando a madrugada
dormir na beira da estrada
num sono longo e sereno
e ver que o mundo é pequeno
e que a vida não vale nada.
O pingo tranqueava largo
na direção de um bolicho
onde se ouvia o cochicho
de uma cordeona acordada
era linda a madrugada
a Estrela d’Alva saía
no rastro d’As Três Marias
na volta grande da estrada.
Era um baile, um casamento
quem sabe algum batizado
eu não era convidado
mas tava ali de cruzada
bolicho em beira de estrada
sempre tem um índio vago
cachaça pra tomar um trago
carpeta pra uma carteada.
Falam muito no destino
até nem sei se acredito
eu fui criado solito
mas sempre bem prevenido
índio do queixo torcido
que se amansou na experiência
eu vou voltar pra querência,
lugar onde fui parido.