* Professora do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Neurociências do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS.
** Professora do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS.
O que você faria se tivesse que responder a dezenas de milhares de comandos e comunicar-se com mais de mil pessoas ao mesmo tempo, sendo que essa troca de informações pode mudar o tempo todo? Se você fosse um neurônio, não teria problema algum. Agora imagine toda essa atividade sendo exercida por cerca de 86 bilhões de células neurais (considerando apenas o encéfalo), meticulosamente contadas por neurocientistas como Suzana Herculano-Houzel, pesquisadora da UFRJ e convidada do Fronteiras do Pensamento desta semana. É na intimidade desses circuitos de múltiplos contatos entre os neurônios, auxiliados por células gliais, que transitam nossos instintos, afetos, pensamentos, subjetividade, nossa lógica, atitudes e estratégias, enfim, quem somos.
Se o que somos é o resultado de nossas funções cerebrais, é importante esclarecer que as pessoas não são pré-determinadas, mas se constituem ao longo de sua vida. Somos todos diferentes não apenas porque resultamos de uma constituição genética diferente, mas porque vivemos diferentes experiências. No final das contas, ambos fatores, a genética e a experiência, agem sobre os circuitos neurais, sobre as conexões entre os neurônios, as sinapses. A cada aprendizagem, as sinapses de novas memórias são reforçadas, enquanto fatos esquecidos são sinapses enfraquecidas. Cada comportamento é o resultado da atividade dos nossos circuitos cerebrais formados ao longo da vida. É graças a essa plasticidade que experiências traumáticas podem ser superadas, que nosso humor é adaptável ao contexto, que nossas atitudes podem melhorar com nossos erros. Com essa plasticidade podemos ir mais longe. Inventamos, planejamos a longo prazo, dimensionamos as consequências de nossos atos. No entanto, muitas dessas capacidades não são exclusividade humana. O cérebro vem evoluindo há milhões de anos. Mantemos kits neurais básicos de sobrevivência, presentes em todos animais. Responder a certos estímulos, regular nossas vísceras, corrigir a postura corporal e a locomoção, formar memórias, manifestar nosso medo e raiva fazem parte deste kit.
Muito já se conhece sobre localizações de funções no cérebro, mas os neurocientistas seguem mesmo interessados em decifrar a área mais desenvolvida que os humanos possuem: o pré-frontal. Se há uma área em que podemos localizar nossa personalidade, essa seria o pré-frontal. Há pesquisas incríveis sobre o desenvolvimento das funções pré-frontais nas crianças quando estimuladas a planejar, antecipar e reconhecer consequências de suas atitudes e colocar-se no lugar do outro. Capacidades que estamos acostumados a cobrar apenas dos adultos.
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A neurociência, querendo ou não, cai como uma luva no quesito multidisciplinaridade. Quem mais senão o cérebro poderia estar vinculado a tantas, se não todas, facetas humanas? Sobre o cérebro, do ponto de vista molecular ao emocional e comportamental, muito vem sendo compreendido. Só que ao conhecê-lo melhor, deparamos com a realidade nua e crua dos mecanismos neurais, que pode, à primeira vista, ir contra preceitos até então soberanos. É o caso do livre-arbítrio. Ao ver como o cérebro processa e avalia decisões, encaramos o fato de que muita atividade neuronal já aconteceu antes de nos darmos conta de nossas vontades e intenções. Também é sabido que não há atividade cognitiva sem emoção - nem que seja uma pitada. Além disto, é bem estabelecido que o cérebro não toma qualquer decisão sem consultar a fisiologia do corpo. Uma área cerebral chamada lobo da ínsula, mais desenvolvida nos humanos que em outros primatas, faz isso. Seus neurônios analisam os dados que recebem, associando uma sensação subjetiva emocional antes de tomarmos uma decisão, especialmente sobre problemas difíceis, que envolvem relações sociais.
Outras áreas mais desenvolvidas no nosso cérebro são as da linguagem. Diz-se que a linguagem verbal é um dom da espécie humana. Ainda não há um veredicto final da ciência sobre isso, mas sim, é bem provável. Regiões específicas cerebrais processam os léxicos fonológico, sintático e semântico. Essa função que tanto comanda as nossas vidas localiza-se, na maioria das pessoas, no hemisfério esquerdo, enquanto a musicalidade emocional da fala ocupa uma localização similar, mas no hemisfério direito. A aprendizagem da linguagem pelas regiões cerebrais responsáveis floresce em conexões sinápticas e, com poucos meses de vida, independente da formação cultural de um povo, o cérebro aprende a reconhecer os fonemas da língua falada a sua volta, associando-os à mímica facial típica de cada som, seguindo um padrão universal. Mas, de novo, descobriu-se que não somente as crianças, mas outros mamíferos também são capazes de perceber categorias fonéticas.
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Por isso, se quisermos entender por que somos como somos, precisamos também conhecer o cérebro dos outros animais. As pesquisas do grupo de Suzana Herculano-Houzel reconhecem que o encéfalo humano não possui um número excepcionalmente maior de neurônios cerebrais que explique as nossas habilidades cognitivas superiores. Talvez o que possa justificar essa diferença cognitiva seja a incrível ideia que nossos ancestrais tiveram de, um dia, cozinharem a comida que consumiam. Daí pra diante, nosso cérebro que arduamente orquestrava comportamentos e trabalhosas funções digestórias e metabólicas para obter energia de alimentos crus pôde, então, se dedicar a outras atividades, como falar, filosofar, criar. E a história humana tomou um rumo diferente das outras espécies.
A neurociência, querendo ou não, cai como uma luva no quesito multidisciplinaridade
Arte de Thais Longaray, ZH
10 LIVROS PARA MELHOR COMPREENDER O CÉREBRO
> O ERRO DE DESCARTES
Obra do português António Damásio que apresenta uma nova visão para o papel das emoções no pensamento. Para Damásio, o "erro" do filósofo René Descartes (1596 - 1650) mencionado no título provocativo era abraçar exclusivamente a lógica e prescindir, em sua teoria do pensamento racional das emoções, ignorando que as emoções também tomam partem em nossos processos de raciocínio. (Companhia das Letras, 336 páginas)
> O CÉREBRO NOSSO DE CADA DIA
Um dos livros que tornaram a neurocientista Suzana Herculano-Houzel um dos nomes mais conhecidos pelo grande público entre a atual geração de pesquisadores brasileiros. A autora apresenta os resultados das mais recentes pesquisas neurológicos sobre temas do cotidiano, como a razão das cócegas, distúrbios de fala, por que o bocejo é contagioso e outros aspectos do dia a dia estudados ou tangenciados por pesquisas neurológicas de ponta. (Vieira e Lent, 224 páginas)
> RÁPIDO E DEVAGAR
Vencedor do Nobel de Economia, Daniel Kahnemann apresenta neste livro sua teoria sobre duas formas de pensar que nosso cérebro executa. O primeiro seria o pensamento rápido, orientado por intuição e fatores emocionais, e o segundo seria o pensamento devagar, mais lógico e reflexivo. Em vez de dispensar o pensamento rápido, Kahnemann analisa seus processos e especula o quanto podemos confiar nele. (Tradução de Cássio de Arantes Leite. Objetiva, 608 páginas)
> CÉREBRO & CRENÇA
Defensor acirrado do ceticismo e crítico de dogmas de qualquer natureza, religiosa principalmente, Michael Shermer, fundador da revista Skeptic e colunista da Scientific American, cruza neurologia e ciências sociais neste livro. Ele discute os fundamentos científicos, embora muitas vezes pouco conhecidos, para vários relatos de experiências sobrenaturais de fundo religioso. Para ele, o conhecimento só vem quando o homem resiste ao impulso da crença. (Tradução de Eliana Rocha. JSN Editora, 390 páginas)
> O OLHAR DA MENTE
Uma série de relatos de casos escritos com a prosa envolvente de Oliver Sacks e que discutem as consequências, no dia a dia, de uma série de distúrbios, principalmente os da visão. Os relatos, mesclando verve e erudição, se entrecruzam com as memórias do autor do momento que passou de médico a paciente, devido ao diagnóstico de um câncer em um dos olhos. (Tradução de Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras, 232 páginas)
> O CÉREBRO HUMANO
Com o subtítulo Uma Visita Guiada, este volume da pesquisadora britânica Susan Greenfield é um autêntico exemplar de divulgação científica, fazendo um apanhado dos avanços realizados pela ciência neurológica a respeito do cérebro nas últimas décadas. Um resumo abrangente sobre o funcionamento do cérebro, o que se sabe sobre sua evolução e como ele é afetado pelo impacto de acidentes ou pelo uso de drogas. (Tradução de Alexandre Tort. Rocco, 148 páginas)
> MUITO ALÉM DO NOSSO EU
O neurologista Miguel Nicolelis discute neste misto de divulgação científica e livro de memórias algumas funções do cérebro, o que a neurociência já sabe sobre a anatomia do órgão e como ele pode ser interconectado à tecnologia. Neste ponto, Nicolelis também faz um apanhado do resultado de seu tempo de pesquisa nesse campo, e que perspectivas a interação entre cérebro e cibernética trará no futuro. (Companhia das Letras, 552 páginas)
> SUBLIMINAR
Físico de formação, o americano, Leonard Mlodinow relata neste livro "como o inconsciente influencia nossas vidas", como entrega o subtítulo. Mlodinow. Cada capítulo apresenta campos em que psicólogos e neurocientistas veem traços do inconsciente em ações tomadas pelo cérebro no "piloto automático". Desde percepções visuais até nossas interações com indivíduos e grupos. (Tradução de Claudio Carina. Zahar, 304 páginas)
> COMO A MENTE FUNCIONA
Steven Pinker faz um cruzamento exaustivo entre a biologia evolutiva e os estudos cognitivos da neurociência. Pinker mapeia as raízes evolutivas que levaram nosso cérebro a desenvolver funções executadas como tomadas de decisões e o aprendizado do ambiente que nos cerca. (Tradução de Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras, 672 páginas)
> A ARTE DE ESQUECER
Para o neurologista Iván Izquierdo, pesquisador da PUCRS e especialista em questões de memória, esquecer não é necessariamente um incômodo, e sim um mecanismo de escape do cérebro para evitar a saturação de informações e centrar-se nas memórias essenciais que nos definem. É o que ele defende neste livro que discute por que esquecemos o que esquecemos e o que isso revela sobre quem somos. (Vieira e Lent, 136 páginas)