Zonas de fronteira podem ser inspiradoras. A mistura de influências e o fluxo de visitantes costumam ser bons temas para artistas – inclusive para músicos de rock. No entanto, manter uma banda em Santana do Livramento, limite com o Uruguai, ou Uruguaiana, com a Argentina, é também um grande desafio.
Roqueiros da fronteira enfrentam a distância dos grandes centros e precisam se adaptar às novas tecnologias de difusão musical – problema também enfrentado por quem vive nas capitais. E as meninas ainda precisam enfrentar o machismo. Confira aqui como eles dão um jeito para seguir fazendo barulho.
Além da ponte
A integração entre brasileiros e argentinos em Uruguaiana e Paso de Los Libres passa necessariamente pela ponte de 1,4 quilômetro que une os dois países. É claro que a ponte é um fator unificador, mas nem se compara à integração promovida pela fronteira seca de Santana do Livramento e Rivera, em que uruguaios e brasileiros têm trânsito livre. Isso faz com que bandas com dupla nacionalidade sejam razoavelmente comuns em Livramento, mas constituam ainda uma raridade em Uruguaiana, apesar da última cidade ser sensivelmente maior do que a primeira – 125 mil contra 80 mil habitantes.
A DeLorean é uma das poucas que resiste ao trânsito internacional para ensaios e shows. Criada há mais de 10 anos, já passou por diferentes formações. Atualmente, é liderada por um brasileiro que mora em Libres, o baterista Temístocles Almeida, e conta também com os uruguaianenses Áureo Goulart (guitarra) e Tiago Coutinho (guitarra) e o argentino Juan Franco (baixo).
Para Temístocles, a principal dificuldade é encontrar locais para tocar. Apesar do rock ser muito vivo na Argentina, Paso de Los Libres é uma cidade de porte pequeno, de cerca de 45 mil habitantes, o que restringe o número de pubs e bares, mesmo com uma rica tradição cultural. Da mesma forma, há poucas cidades brasileiras de porte médio por perto.
— Nunca saímos dessa ponte entre Uruguaiana e Libres. Se quisermos tocar em São Borja, Itaqui ou Alegrete, fica praticamente inviável, porque fica caro somar o cachê e o transporte. Vivemos um isolamento – diz o baterista.
Para Virginia Panerai, da banda Dona Doida, tocar do lado argentino é difícil por conta da forte cena roqueira do país irmão:
— Algumas bandas argentinas tocam em Uruguaiana, mas sair daqui para tocar em Libres é difícil. A DeLorean talvez consiga esse trânsito com mais facilidade por contar com um argentino na banda. Já tive dois shows marcados em Libres, mas que foram desmarcados dias antes por receio dos contratantes, pois achavam que o público podia não se interessar por uma atração brasileira.
De pai para filho (e neto)
Embora pouco conhecida no centro do Brasil, a tradição da Argentina no rock é vasta e influencia os músicos da fronteira. Carmo Goulart, guitarrista de 72 anos, lembra de amigos que tinham discos de blues vindos do país vizinho. Além disso, era fácil sintonizar rádios com locutores que falavam em castelhano, mas apresentavam referências roqueiras variadas e de diferentes lugares.
Vindo de uma família ligada à musica regional – é tio dos gaiteiros Paulinho e Guilherme Goulart –, hoje Carmo lidera a banda Black Sanga Grande Blues.
— Se você ouvir meu blues, vai perceber que tem algo do som da fronteira — diz Carmo.
Na Black Sanga, Carmo divide o palco com o neto Vinícius Goulart Tajes (bateria) e o filho Áureo (guitarrista, também integrante da DeLorean).
— Eu o Áureo crescemos ouvindo rock argentino pelo rádio. A cena nacional de lá é forte – avalia Temístocles Almeida, companheiro de Áureo na DeLorean.
Nativos e ativos
Com mais de 20 anos de trajetória, a banda Nativos del Rock é formada por dois integrantes brasileiros, Claudio Conde (baixo) e Tiago Prates (bateria), e dois uruguaios, Julio Rodríguez (vocal) e Andrés Ibáñez (teclado). É uma banda com temas autorais em espanhol, mas que também inclui no repertório alguns clássicos do rock argentino e brasileiro. Com boa circulação na região de Livramento e Rivera, quer ir além.
— Há uma cena crescente de pubs e bares com música ao vivo em nossa região, na qual o rock tem espaço. Isso é ótimo. Porém o sonho de todo grupo é sair, ir além. Nosso maior desafio é distância, pois estamos longe dos grandes centros. Isso encarece o custo dos shows por causa dos traslados — avalia Julio Rodríguez.
A banda chegou a participar de uma coletânea da Rádio Atlântida, com uma música cantada em espanhol, em 2001. À época, enfrentou problemas por conta do nome do grupo, que havia sido registrado no Uruguai, mas era requerido por um grupo brasileiro. Por um tempo, tiveram que atuar como Activos del Rock e Julio Rodríguez & Banda, o que atrapalhou o progresso da carreira dos rapazes.
Hoje, enfrentam o mesmo dilema dos músicos das capitais: querem lançar um novo álbum, mas não sabem qual é o melhor formato para o projeto. Já chegaram a lançar um pen drive com todos os temas autorais, mas encaram a possibilidade de abandonar definitivamente o formato físico.
— Sou formado pelo formato do disco. Hoje, o que tem se usado é fazer uma música e um vídeo para divulgá-la. Talvez esse seja o melhor modo de chegar às pessoas por meio da internet. No entanto, queremos ir além da internet, levar o show para outros lugares, pois é no palco que a música ganha vida.
A guria de Uruguaiana
Apesar de o rock ter certa tradição na zona de fronteira, poucas foram as mulheres a se aventurar pelo gênero musical na história da região. Atualmente, a única cantora da cena em Uruguaiana é Virginia Panerai, vocalista da Dona Doida.
Virginia já liderou uma banda só de mulheres, mas o projeto teve vida curta e realizou poucas apresentações. Na Dona Doida, que tem foco em covers de pop rock, ela é a única presença feminina no palco. Para ela, o machismo dificulta o ingresso das meninas no cenário.
— Sinto que há uma barreira para iniciar o trabalho. Tive muita dificuldade para marcar os primeiros shows da Dona Doida em lugares que meninos iniciantes conseguem marcar com facilidade. Interpreto isso como preconceito por ser mulher. Depois desse primeiro contato, fica mais fácil voltar, mas é um começo difícil – avalia Virginia.
A cantora afirma que muitas meninas vão aos shows da cidade, mas não se sentem à vontade para serem protagonistas:
— Sempre acompanhei o movimento de rock na cidade. A gente fica na plateia, mas se acha desencaixada, pois quer estar mesmo dentro.
A cantora Carolina Cáceres, de Santana do Livramento, também sentiu preconceito para iniciar sua trajetória:
— O mundo do rock ainda é um ambiente muito machista. Quando comecei a me apresentar nos pubs e nos bares, havia preconceito por eu estar trabalhando na noite, ficando até tarde, acompanhada de homens. Além disso, há a objetificação. O que acaba sendo avaliado é a beleza, e não a música, o talento, a habilidade com o instrumento ou a voz. Os elogios vêm muitas vez pelo lado estético, de gênero.
Carolina, no entanto, observa mudanças recentes (e positivas) no cenário da região:
— Antes, havia pouquíssimas mulheres no ramo do rock. Atualmente, vejo que muitas estão surgindo, tanto em Rivera como em Livramento. E, desde o início do ano, algumas cantoras de fora vieram fazer shows em pubs da fronteira.