Pra mim, é quase como perder um pai. Ele me ensinou muito, me estimulou muito. Estivemos juntos muitas vezes em muitos lugares e situações. Sempre me recebeu com largo afeto em sua casa - e de Dona Marina, guardiã atenta. Sobre o que eu quisesse saber, ficávamos um tempão ao telefone. O Rio Grande do Sul vê sair da cena física um de seus fundadores e espelhos culturais, um homem que desempenhou papel fundamental em moldar sua identidade. Sem Paixão Côrtes, o Rio Grande não seria o mesmo. Se gostamos de heróis, aí está um raro herói sobrevivente. A enorme obra de Paixão Côrtes está à disposição de todos nas discotecas e bibliotecas. Não teremos outro igual por muito tempo.
Entrevista
Segue uma entrevista publicada em Zero Hora em 18 de setembro de 1977.
"Música do Rio Grande não toca em horário nobre nem que seja da melhor qualidade"
Foram duas horas de entrevista a Juarez Fonseca, com participação de Celso Loureiro Chaves. Paixão começou falando dos primórdios do Movimento Tradicionalista, tempo em que artistas de diversas áreas começaram a descobrir o Rio Grande do Sul. Não faz muito, 20 anos. Mas até aquela época, nada havia que caracterizasse uma cultura regional. Toda a sistematização e o conhecimento de nossas formas folclóricas surgiram a partir daí, do fim da década de 1940. Depois, chegando até os dias atuais, a conversa envolveu outros aspectos. Da isolada manifestação musical de Osvaldinho e Zé Bernardes até a explosão gerada pela consolidação do Movimento – segundo levantamento do próprio Paixão Côrtes, há hoje cerca de 80 grupos de música gauchesca.
De 1947 para cá são 30 anos de pesquisas sobre a história e a cultura do Rio Grande...
Fora os ameaços, não é? Porque eu acho que os ameaços são o mais importante, sabe por que, tchê? Porque até o sujeito tomar uma resolução, ou encarar uma realidade, tem que ter um lastro, ou uma herança, ou então sentir o reflexo de um momento que vai consolidar sua posição diante de uma situação, de uma área. Meu interesse por esse estudo começou antes, quando era um menino do Interior.
Como era o Rio Grande do Sul naquela época?
Em decorrência da própria época que nós atravessamos – nós eu falo da geração do pós-guerra – tivemos um impacto das forças vencedoras nos seus mais variados sentidos, cultural, artístico, de hábitos e costumes. As forças vencedoras da Segunda Guerra, como decorrência natural, sociológica, invadiram os outros países, com o direito – adquirido por elas, pelo menos – de levar as suas mensagens de vencedores. E, naquele tempo, dadas as dificuldades de comunicação, o Rio Grande estava bastante afastado do Brasil em termos de desenvolvimento cultural, estava mais preso a grupos pequenos, como o Grupo Quixote, por exemplo, primeiro a se manifestar em poesia, em artes plásticas, ali pelo fim dos anos 1940...
Fale de algumas das figuras desse grupo...
Tinha o Glauco Rodrigues, o Carlos Scliar, o Danúbio Gonçalves, artistas plásticos que depois formaram o Grupo de Bagé. Foram eles quem primeiro encararam as gravuras com temas regionais do Rio Grande. Pegavam charqueadas, homens do campo, cenas rurais, pipas d’água, isto é: faziam o registro artístico do momento do Rio Grande através das diferentes formas de manifestações e do hábito comum do gaúcho, no seu habitat normal. Mas não era um movimento de culto às tradições, onde são apresentadas figuras sob uma forma na maioria das vezes diferente da realidade, de forma mais simbólica. Lembro que o trabalho deles até chocou um pouco, porque aqueles mais enraizados ao tradicionalismo queriam símbolos, e eles estavam retratando uma realidade sociológica da transformação do Rio Grande do Sul.
Então, foi mesmo no fim da década de 1940 que começou a se observar essa preocupação em rever o Rio Grande do Sul?
Entre 40 e 50. Podemos falar inclusive no aspecto literário. E dessa época, por exemplo, a revista Província de São Pedro, com intelectuais e escritores Augusto Meyer, Guilhermino César, Dante de Laytano, Manoelito de Ornellas, Moisés Vellinho, Dyonélio Machado e Carlos Reverbel. Reverbel inclusive revolucionou a época pesquisando Simões Lopes Neto, sendo o descobridor dos Causos do Romualdo, até então inéditos. Eram escritores que não tinham possibilidade de publicar obras, pois ainda não existia um mercado. Essa revista excelente, publicada pela Editora Globo, foi uma grande contribuição ao momento cultural do Rio Grande do Sul, um testemunho bastante vivo da época, de um momento de transição.
Por que você diz que não havia um mercado para a literatura de temática regional?
Porque não se escrevia quase nada sobre o Rio Grande do Sul. O próprio Erico Verissimo tinha temas totalmente alienígenas, quer dizer, da vivência que ele teve nos Estados Unidos... Não estou tirando o mérito da literatura dele, não estou criticando o Erico, quem sou eu... Registro o que me vem à memória daquele momento. Depois, muito depois, é que Erico veio com O Tempo e o Vento. Também não se reeditava quase nada da literatura regional, e dos poetas, por exemplo, só existiam Vargas Neto, Balbino Marques da Rocha e uns poucos outros, três ou quatro livros que tinham sido editados. Os outros poetas estavam lá fazendo as suas produções mas não tinham possibilidade de publicar, a não ser raramente em algum jornal. E depois, ninguém se atrevia a fazer a divulgação desses poetas, levá-los ao conhecimento de mais gente. Imagina alguém ir a público dizer versos, declamar poemas gauchescos...
Seria ridicularizado?
Claro! Aquele rapaz lá de Bagé, Ribeiro Hudson, fazia versos e declamava, e todo mundo dava risada. Quando nós fundamos o 35 Centro de Tradições Gaúchas, em 1948, eu mesmo comecei a declamar, diante da inexistência de gente que se atrevesse a fazer isso. Declamei, por exemplo, os primeiros versos do Glaucus Saraiva. Um bom declamador, o radialista Amandio Bicca, só declamava esporadicamente. Como raros se atreviam a dizer versos, pouca gente conhecia, pouca gente valorizava. Mas eu queria lembrar alguns nomes que esqueci de mencionar quando falei nos artistas que se expressavam com temas regionais. Nas artes plásticas, um nome muito importante era o do alemão José Lutzenberger, que fazia desenhos e pinturas com temas gauchescos que hoje todos conhecem, pois se tornaram clássicos. Trabalhei com Lutzenberger, ajudando-o na caracterização específica das cenas e tipos. Ia para a casa dele e ficava orientando. Era um tipo meio prussiano, batia pé quando eu corrigia, então eu brigava e perguntava o que estava fazendo ali. E o desenhista Nelson Boeira Faedrich, hoje também bastante conhecido, com trabalhos publicados na imprensa, foi quem ilustrou a primeira edição dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, do Simões Lopes.
E na parte musical?
No início, estávamos praticamente restritos à chamada Dupla Campeira, Osvaldinho e Zé Bernardes, que são os pioneiros, e a quem muito se deve, pela autenticidade da forma, a singeleza da expressão dos temas de que se ocupavam, com letras do poeta Lauro Rodrigues. Em meu próximo trabalho, Do Folk aos Novos Rumos, dedico um capítulo especialmente a eles. Entrevistei e filmei os dois, tenho todos os dados biográficos, justamente por sua importância. Além disso, Osvaldinho e Zé Bernardes até hoje atuam, Zé Bernardes deve estar com quase 70 anos. Entre os estudiosos, o professor e musicólogo Enio de Freitas e Castro realizou várias pesquisas. Foi graças a ele que eu e o Barbosa Lessa pudemos aprofundar as nossas, pois nos emprestou aquele enorme gravador da Associação Riograndense de Música. Eu e o Lessa saíamos pelo Interior, de ônibus, e tínhamos que pagar passagem para o gravador... Também foi importante o maestro Victor Neves, autor de uma série de pesquisas no campo da música folclórica. E em 1953, o Conjunto Farroupilha, grupo vocal da Rádio Farroupilha, que até então interpretava música internacional e um pouco de música brasileira, gravou o primeiro disco de música gauchesca. A história é a seguinte: o J. Antônio d’Ávila, diretor da Farroupilha, foi procurado por dirigentes da Rádio, nova gravadora que começava a lançar os primeiros LPs de dez polegadas no Brasil, para lhes indicar um grupo que cantasse música regional do Rio Grande do Sul. D’Ávila indicou o Conjunto Farroupilha e seus integrantes recorreram ao Lessa e a mim para a formação do repertório. Gravaram Negrinho do Pastoreio, Balaio, Me Dá um Mate, Rancheira de Carreirinha, Amargo e outras. Com o título de Gaúcho, esse disco foi entregue ao Getúlio Vargas em audiência especial no Palácio do Catete, como um acontecimento excepcional.
E o Conjunto Farroupilha partiu para um sucesso nacional. Quando começa o programa Grande Rodeio Coringa, que você criou na mesma rádio?
Começa em 1955, comigo e o Darcy Fagundes. O Grande Rodeio modificou totalmente o cenário das programações regionais. Feito ao vivo, no auditório da rádio, líder de audiência nas noites de domingo, deu outra dimensão à cultura gauchesca. Terminava sempre com um desafio de trovas. Eu dava temas, “você hoje vai trovar sobre o poncho”, por exemplo, e não podiam se ofender mutuamente. Então o programa modificou tudo, o povo foi ver músicas e danças que nunca tinha visto. Serviu de modelo até para as programações que hoje estão aí, como o Galpão Crioulo. Era a primeira vez que aparecia um gaúcho pilchado animando um auditório, tchê. Em termos de comunicação, mal comparando ou bem comparando épocas, seria uma animação do tipo do Chacrinha, no linguajar do homem do campo, com quem eu convivi. Havia expressões com as quais o homem do interior se identificava, então foi uma coisa louca, tinha gente que no domingo viajava léguas a cavalo para escutar o Rodeio Coringa onde houvesse um rádio. Mas até essa época, como eu dizia, na música eram Osvaldinho e Zé Bernardes, o Conjunto Farroupilha, o Lupicínio Rodrigues (que fazia de vez em quando umas músicas regionais, como Amargo e Felicidade) e mais duas ou três canções aí, a não ser as tradicionais, como Gauchinha (de Luis Cosme), que era cantada pelo conjunto que havia se formado aqui e se transferiu para o Rio de Janeiro, o Quitandinha Serenaders. Esse conjunto lançou, em 78 rotações, Alecrim e Minuano, ambas do Ney Messias.
A primeira gravação de Prenda Minha também foi feita pelo Quitandinha Serenaders?
Não, a primeira gravação foi da Stellinha Egg.
De que época é Prenda Minha?
A primeira edição pública da partitura musical, impressa em livro, data de 1927. Foi incluída em Ensaio Sobre a Música Brasileira, de Mário de Andrade. Segundo alguns, o poeta e escritor Teodomiro Tostes teria aprendido de um negro velho a melodia da Prenda Minha. E as quadrinhas são pesquisa do jornalista Carlos von Koseritz, que por volta de 1880 publicou uma série delas. Então, em termos de música era mais ou menos isso. E havia a ópera Os Farrapos, de Roberto Eggers, maestro da orquestra da Rádio Farroupilha, relativa ao centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, mas levada à cena no ano seguinte.
Só complementando isso que o Paixão disse, em termos de música erudita essa mesma época da década de 40 é também muito importante. É a época das grandes canções de Armando Albuquerque sobre Porto Alegre; de Natho Henn, que fez Imembuí, Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, A Carreta, Páginas do Sul; das músicas de Luís Cosme, autor de Salamanca do Jarau. Então, na música dita “séria” também há a mesma ebulição. Nas conversas que tenho tido com Armando Albuquerque, ele sempre destaca a década de 1940 como uma década em que aqui se fez, o que nunca se tinha feito. Nos anos 1930 não havia praticamente nada. E agora parece que a ebulição está voltando, há um novo interesse, um apego às coisas regionais. Acho interessante o compromisso com a realidade que havia naquela época. Hoje já é uma outra coisa...
Esse é o grande problema do Movimento Tradicionalista: há pessoas preocupadas em cultuar os símbolos, que são imorredores, e há pessoas que querem viver o passado, querem transportar o passado para o presente. Eu me incluo entre os cultores da tradição e não dos que querem viver a tradição. E já naquela época havia uma reação, que eu acho muito normal, contra essa visão tradicionalista fora da realidade. Quem convive com o homem rural tem que admitir as transformações econômicas e sociais normais... Mas foi bom você lembrar a Salamanca do Luis Cosme, que foi um acontecimento. Depois nunca mais houve nada, que eu me recorde.
A Salamanca tem uma linguagem de música contemporânea sem compromissos com o tradicionalismo. O próprio Luis Cosme diz que utilizou o Boi Barroso não literalmente, apenas como ponto de partida, e essa colocação é perfeita. Será que a movimentação que se observa atualmente, em termos de valorização e revalorização das coisas do Rio Grande do Sul, teria algum paralelo com aquela ebulição dos anos 1940? Há muito músico, por exemplo, voltando-se para o elemento regional, artistas que nunca haviam se preocupado com isso.
Me parece o seguinte: ninguém inventa nada de uma hora para outra, a não ser que o sujeito tenha um fundamento cultural anterior que venha trabalhando subconscientemente. Esse negócio de criatividade inventada não existe; para mim só há criatividade fundamentada num passado, que a cultura vai admitindo. Como anteriormente não existia a cultura das raízes do Rio Grande do Sul não poderia haver criatividade em torno de temas urbanos inspirados em temas regionais. A não ser, como frisamos, composições como Salamanca do Jarau, que é um tema clássico, universal, de influência européia, com situações e enfoques do Rio Grande do Sul. Posteriormente, essa avalanche de tradicionalismo despertou uma dúvida: tem validade ou não, tem méritos ou não, surgem bons ou maus compositores? Sociologicamente está provado: o inferior imita o superior – não o inferior qualitativo, quero dizer; o soldado imita o cabo, o cabo imita o sargento e assim por diante. As coisas começam da vila para a cidade, da cidade para a capital, da capital para o Rio de Janeiro, que é de onde vêm as ordens de comunicação, disco, televisão. O que estamos ouvindo nesses últimos anos? São temas de folclore dinamizados em ritmos populares. É Jorge Ben Jor fazendo isso, Gilberto Gil, Caetano Veloso, o Baden Powell com o Berimbau e tal...
Só que Berimbau já tem quase vinte anos...
Meu filho, eu gravei em 1962 o meu primeiro long-play. E o violonista que me acompanhou nos temas do Rio Grande do Sul, sentadinho, tocando violãozinho, foi Baden Powell. Esse disco recebeu o prêmio de melhor realização folclórica nacional. Baden estava surgindo, depois é que ficou famoso, e trabalhando em cima do folclore. Mas você pega o Gil e o Caetano Veloso, para falar apenas deles, com os temas da Bahia, de folclore baiano, colocados em termos de música popular. Nossos músicos aqui, que estavam na do samba, na da música popular brasileira, vendo esse trabalho com base folclórica fazendo sucesso, naturalmente devem ter recebido uma influência...
Então, na sua opinião o fato de o pessoal aqui estar começando a se voltar para os elementos regionais seria também um reflexo de influência central?
Claro, indiscutivelmente. A verdade é a seguinte: regionalismo gauchesco até hoje não se toca em horário nobre de nossas rádios; música do Rio Grande não se toca em horário nobre nem que seja da melhor qualidade. Agora, como o Tito Madi fez Gauchinha Bem-Querer, lançada no Rio de Janeiro, todo mundo toca aqui. Os Almôndegas, por exemplo, estão com sucesso determinado pelo Centro, e culturalmente o grupo tem possibilidade de cantar “Me perguntaram se eu sou gaúcho/ Está na cara, repare o meu jeito...”, em horário nobre. Citei os Almôndegas como um momento representativo do todo, a influência veio do Centro para cá. Só depois deles passarem pelo Centro é que nossas rádios começaram a tocar Velha Gaita, Gaúcho de Passo Fundo, Minha Carreta. Então, a influência veio do Centro para cá, até encontrar-se os valores daqui; agora começaram a buscar esses valores...
O que você diz da música de Teixeirinha?
Temos que separar duas coisas, tchê: a temática do Rio Grande do Sul como forma de cultura e a temática do Rio Grande do Sul como forma popular. É preciso examinar isso na realidade. Quantos LPs tem o Teixeirinha? Não estou invalidando nem valorizando ninguém, apenas falando em termos de temática popular... O Teixeirinha tem 57 LPs. Quem é que vende mais discos no Rio Grande do Sul? É ele. Então tem aí um público tremendamente importante que ele sensibiliza, e ele tem o direito de levar seu produto a quem bem quiser. Não estou de acordo que o vejam sob o prisma do preconceito e da “superioridade” cultural, como ocorre com frequência. Porque é muito melhor que tenhamos cantores populares menos cultos e com temáticas mais simples, do que música estrangeira, com língua estrangeira, entrando na massa popular. Acho importante que se analise isso, porque é melhor cantar, tocar, vender discos de temas brasileiros, e conseqüentemente do Rio Grande do Sul, do que música estrangeira para um povo que não tem capacidade analítica, que não conhece as suas origens, e muito menos a origem do que vem de fora. Se não tem capacidade de analisar a sua, como vai analisar as outras? É preferível que tenhamos coisas simples, ingênuas, pouco qualitativas para determinado público. Quem faz o sucesso não sou eu, não são vocês: é o povo que dita as normas. O povo culto exige melodias mais cultas, povo menos culto exige melodias menos cultas. As linhas, as diretrizes de novos rumos só podem ser as consagradas pelo povo, porque ele é quem manda e conceitua. Agora, se a deficiência de cultura desse povo faz com que alguns artistas se submetam ao consumo de massa, esse é outro problema. Temos que analisar, registrar esse fato. O que achamos que deva merecer outro tratamento, é outra coisa...
Mas esse povo vai comprar a biografia do Teixeirinha e não os seus livros sobre folclore...
Mas claro! O Teixeirinha é o mais popular, um homem de grande comunicação e trabalho intenso. A grande importância de determinados artistas é o momento. Outros se preocupam com um tempo de maior durabilidade. Aí quem vai julgar, é isso que digo, não sou eu, nem vocês, é o povo e o tempo. Fiz agora um levantamento e cheguei a cerca de 80 conjuntos de música regional gauchesca em atividade. Trinta anos atrás posso dizer que não havia nenhum. Tão grande mudança se deve ao movimento tradicionalista – constato isso mas não puxo a brasa pro meu assado, pois sou até antitradicionalista na concepção dos fanatismos.
Penso que os novos compositores urbanos que se aproximam do elemento regional o fazem por dois motivos: a busca de uma identidade própria no panorama nacional e o aproveitamento do espaço de trabalho que vem se abrindo com os festivais nativistas.
Olha, acho que música do Rio Grande só terá projeção no cenário nacional quando ela pegar o tema brasileiro, o andamento brasileiro, e colocar dentro desse andamento a temática rio-grandense. O que está acontecendo é que querem ser diferentes, o Rio Grande quer ser diferente do resto, quando isso não pode acontecer, tem que ser integrado ao todo, conservando as suas características. Os temas de folclore são uma inspiração, uma possibilidade. A outra possibilidade é a música nacional com tema do Rio Grande do Sul, que eu acho de uma validade extraordinária. São duas opções e dois caminhos a seguir, e ambos são válidos. O problema é que determinados grupos fazem uma música que não tem essência de terra, nem andamento de terra, nem ritmo de terra, e dizem que são coisas do Rio Grande do Sul. Aliás, nosso folclore mais original nem tema gauchesco tem...
Por que a música folclórica argentina, de Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui, é ouvida por cada vez mais pessoas no mundo, enquanto sua, digamos, prima, a música gauchesca brasileira, não consegue ser ouvida naturalmente nem no Rio Grande do Sul?
Mas o nível de cultura... Começa pelo seguinte: o Rio Grande do Sul, na sua expressão de música, tem em 1946 dois cantadores, Osvaldinho e Zé Bernardes. E antes? Queres modificar o panorama assim de repente? Num pedaço do sul de um continente que na origem praticamente não tinha comunicação com o resto do Brasil e começava a descobrir o País, e o Brasil começava a pensar que existe o Rio Grande do Sul, que não era um pedaço da Argentina... Na Argentina e Uruguai a música é música-pátria, enquanto nós somos um pedacinho de um continente com unidade nacional. Há 28 anos, quando eu fui lá, tu entravas na Argentina, de sul a norte, e encontrava professores de música folclórica. Perón, o que fez? Implantou a obrigatoriedade do folclore nas escolas, rádio, televisão, discos, edições, e foi isso que manteve o Perón por tantos anos. Então, os artistas começaram a ter projeção. O cara que toca clássicos, pensava: “"Ah, mas eu também não vou ficar só aqui...” Tô te contando isso, não é conversa. Tu achas que o Atahualpa Yupanqui ia viver de recitais no Japão, por exemplo? E por que ele saiu da Argentina?
Por que?
Porque começou a cantar as reivindicações do povo. Aí então, “corta”, “tira o disco”, mesmo problema nosso aqui... Esse é o problema. Nós estamos no pedaço de um continente que agora começa a ser descoberto, e a Argentina e o Uruguai, a música, a cultura gaúcha deles, é pátria. Então, a cultura pátria tem que ter a maior expressão, que é a nossa música popular brasileira, que não é a gauchesca. E pra eles, é a música do povo. Na Argentina, Uruguai, qual é a música? É o tango? Não, é a chacarera; o tango é “para bailar”. O povo canta os outros sons, mas como é que foi? Foi numa escola obrigatória, que é o que se está interiorizando aqui, agora, Rio Grande do Sul, nas escolas do primeiro e segundo grau, e licenciatura de arte. Faço shows para a Secretaria de Educação em lugares onde nunca apareceu um bicho vestido como eu... Acho esse negócio da interiorização da nossa cultura uma coisa fenomenal.
Conta mais.
Tu precisas ver: termina o show, tchê, é uma mesa-redonda; aí é que começa o trabalho, a conscientização. Agora, a realidade é a seguinte: o movimento tradicionalista é como um gigante, e como todo o gigante tem uma atrofia. Cresceram os músculos, cresceram as formas físicas e esta aqui, o encéfalo, ficou desse tamanhozinho. Quer dizer... “Ah, o movimento tradicionalista é uma força!”. Agora, pensar... atrofiou a mente. Então agora está despertando a mente dos caras através da cultura. E quem são os caras cultos? São conjuntos universitários, que estudam música, que tiveram influências de escolas ou de música popular brasileira e que estão encontrando os horizontes do Rio Grande do Sul, com beleza. Estão dentro da sua cultura de conhecimento musical, o que os outros não tinham.
Felizmente...
Felizmente, claro. Eu acho que houve um decréscimo do próprio movimento tradicionalista. Dentro do estilo regional gauchesco, apareceram grupos depois do Conjunto Farroupilha e d’Os Gaudérios? Não, praticamente. Estou falando um pouco demais, mas são fatos que ninguém contou e que eu nunca tive oportunidade de falar. O conjunto Os Gaudérios quem formou fui eu, porque só havia Osvaldinho e Zé Bernardes, excelentes músicos e tal, mas eu queria uma outra dimensão do folclore que tinha pesquisado. Peguei o acordeonista Neneco, que não cantava, só tocava em CTGs, o Morais Filho, que é excelente, junto com o Jarbas Cabral, e incluí o Zé Gomes, de formação clássica, que veio de Carazinho tocando violino. Reuni na minha casa e lancei o grupo no Grande Rodeio Coringa, com grande sucesso. Até hoje sua influência é mencionada. Aí tu vês a minha preocupação, isso em 1955, 56, em dar novos horizontes à música.
Você foi um dos pais dos CTGs. Como estão eles hoje?
Um Centro de Tradições tem diversas finalidades, e cada um deles dá as dimensões dentro do nível cultural de seus dirigentes. Numa hora ele está muito bem, noutra hora não está tão atuante. O que acho é que os Centros de Tradições, de um modo geral, se tornaram simplesmente sociedades recreativas, com finalidades de música e de dança, e não estão cumprindo, na sua maioria, os objetivos culturais e históricos para os quais nos propusemos quando criamos o 35 CTG. Mas tenho esperança de que voltem às origens.
ZH 18 setembro 1977