Na noite de 21 de outubro de 1967, a música popular brasileira viveu um instante mágico. Uma rara conjunção de astros, que para muitos nunca mais se configurou novamente com tamanho brilho e intensidade, subiu ao palco do Teatro Paramount, em São Paulo, para disputar a final da 3ª edição do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Nas cinco primeiras colocações, consagraram-se Edu Lobo, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, todos jovens em seus 20 e poucos anos.
O Brasil vivia um momento de tensionamento político, que desaguaria meses depois no período mais sombrio da repressão imposta pela ditadura militar, quando aquela noite mudou o curso do que se convencionou se chamar de MPB. Vanguarda e tradição demarcaram ruidosamente seus territórios. Gil, acompanhado pelos Mutantes, e Caetano, com Beat Boys, decidiram ver que bicho dava adicionar ao seu som a guitarra elétrica. Nascia o braço musical do tropicalismo, ponte sonora que ligava o Brasil a Swinging London dos Beatles e dos Rolling Stones. Do outro lado, Chico e Edu Lobo erguiam o estandarte da canção brasileira sedimentada no samba, na bossa nova e nos ritmos regionais.
Foi também nesta edição dos festival dos festivais que os compositores saíram da sombra dos intérpretes, ruptura transformadora do curso da música brasileira, como destacou, em recente entrevista a Zero Hora, o jornalista e crítico musical Zuza Homem de Mello, autor do referencia livro A Era dos Festivais:
— Isso ocorreu devido à percepção que esses autores tiveram de que, embora fossem eles os autores de músicas em festivais anteriores, eram os cantores que ficavam com os louros. Ninguém fala de Arrastão por causa do Edu Lobo e do Vinicius de Moraes, mas sim da Elis Regina. Quando veio Disparada, era o Jair Rodrigues. Ninguém falava do Geraldo Vandré (coautor com Téo de Barros). No caso de A Banda, a intérprete era a Nara Leão. O Chico acabou entrando no Festival da Record de 1966 por causa da deficiência de volume da voz da Nara, que ficava encoberta pela orquestra. Tenho a impressão muito clara de que a canção cantada por seu próprio autor pode até não ser rigorosamente perfeita em termos de interpretação, mas ele canta a sua verdade. É a verdade que o Caetano canta em Alegria, Alegria, e Gil em Domingo no Parque, ou Edu Lobo em Ponteio, Chico em Roda Vida. Essa verdade surgiu nesse festival de 1967.
Lançado em 2010, o documentário Uma Noite em 67, de Ricardo Calil e Renato Terra, reconstrói na íntegra os bastidores e as principais apresentações da grande final. Veja os principais momentos destacados pelo filme, na ordem de colocação dos vencedores: 1º) Ponteio, com Edu Lobo e Marília Medalha; 2º) Domingo no Parque, com Gilberto Gil e Os Mutantes; 3º) Roda Viva, Chico Buarque e MP4; 4º) Alegria, Alegria, com Caetano Veloso e Beat Boys; 5º) Roberto Carlos, com Maria, Carnaval e Cinzas.
Edu Lobo
Aos 24 anos, o cantor, compositor, arranjador e letrista inspirado Edu Lobo já era um craque dos festivais — é coautor com Vinicius de Moraes de Arrastão, música vencedora, com Elis Regina, da primeira edição do festival, em 1965. Sua parceira em Ponteio é Marília Medalha, bela e talentosa cantora que a imprensa da época tentou tornar rival de Elis. Reconhecido por combinar sofisticação musical com temas sociais e políticos, Edu lembra que sempre foi um compositor obsessivo ("nunca uma melodia veio atrás de mim") e que os festivais mexiam com o público ao ponto de existirem bolsas de apostas ("éramos como cavalos de corrida").
Gilberto Gil
Por pouco Gilberto Gil não ficou de fora desta noite especial, na qual se consagraria ao lado dos então desconhecidos Mutantes. Nas eliminatórias, Gil sofreu um "apagão" no hotel e foi buscado às pressas por Paulo Machado de Carvalho, dono da TV Record, que o jogou embaixo do chuveiro. Diz Ricardo Calil: "Acho que o pânico que acometeu Gil foi causado por suas contradições: participar de uma passeata contra a guitarra e, dois meses depois, se apresentar com guitarra em Domingo no Parque. Gil é um homem conciliador, mas sua música na época foi uma ruptura, inclusive com amigos muito próximos e queridos, como Elis e Dori Caymmi".
Chico Buarque
Nos depoimentos, Chico e os integrantes do grupo vocal MPB 4, que cantaram Roda Vida com ele, lembram que a estrutura harmônica da canção trazia uma "acelerada" final que provocava um efeito apoteótico na plateia. Chico fala ainda da estranheza ao se ver vestido em um sóbrio smoking enquanto Gil e Caetano subiam ao palco "fantasiados". Diz também que, depois daquela noite revolucionária de 1967, sentiu ser tachado de "velho" e "conservador" com apenas 23 anos. Com bom humor, afirma não lembrar das reuniões que lançariam as bases do tropicalismo porque, segundo Caetano lhe diz, comparecia bêbado aos encontros.
Caetano Veloso
Apesar de Alegria, Alegria ser considerada "americanizada", pelo uso da guitarra elétrica (a cargo do grupo de rock argentino The Beat Boys), Caetano relembra que compôs a canção inspirado em A Banda, que Chico Buarque havia defendido na edição anterior do festival. Segundo ele, a estrutura da música tem mais a ver com marchinhas lusitanas do que com rock'n'roll. O filme mostra como Caetano dobrou a plateia. Alegria, Alegria começa sob vaias e, a cada entrada do refrão arrebatador, vai somando aplausos até a consagração épica.
Roberto Carlos
Já o grande ídolo da jovem guarda, febre da juventude brasileira nos anos 1960, o futuro Rei surpreendeu ao defender um samba: Maria, Carnaval e Cinzas. Naquele clima incandescente, a presença do astro, tido como um "alienado" pela porção mais politicamente engajada da plateia, era um desafio aos produtores. Havia até torcida organizada para vaiá-lo, lembra o pesquisador musical e crítico Zuza Homem de Mello, consultor do filme, na entrevista com Roberto.
— É mesmo? Se eu soubesse disso nem teria ido — diverte-se o cantor, que impôs seu carisma no palco e fez seus fãs abafarem os protestos.