O palco é a zona de prazer e conforto de Caetano Veloso. Tanto que está sempre sobre ele, viajando pelo Brasil e mundo. Volta a Porto Alegre na próxima quinta-feira para mostrar, no Araújo Vianna, seu novo espetáculo, ao lado da cantora Teresa Cristina. Um dos maiores compositores do Brasil, O baiano de 74 anos faz um apanhado da longeva e celebrada carreira destacando canções há muito ausentes de seu repertório. A carioca de 48 anos promove o disco e o DVD que lançou este ano em tributo a Cartola.
Será a terceira visita de Caetano à Capital desde 2013, quando trouxe a turnê do CD Abraçaço acompanhado pelos jovens músicos da banda Cê, formação responsável por uma notável injeção de vigor na trajetória do artista. Em 2015, celebrou com Gilberto Gil 50 anos de amizade e carreiras.
Caetano e Teresa comandam um concerto em dois atos. Começa com a intérprete consagrada nos bares da Lapa, que já assinou trabalhos em homenagem a Paulinho da Viola, Clara Nunes, Chico Buarque e Roberto Carlos. Acompanhada pelo violonista Carlinhos Sete Cordas, a cantora lembra clássicos de Cartola, como O mundo é um moinho e As rosas não falam, e recebe Caetano no bis embalado por sucessos dele, como Tigresa e Desde que o samba é samba. Em seguida, Caetano faz seu show solo, banquinho e violão, e ganha o reforço de Teresa. Em entrevista por e-mail a ZH, Caetano fala sobre Teresa e as canções que resgatou para a nova turnê. Também comenta as turbulências políticas, o Nobel de Bob Dylan e a harmonia dos elementos em que é mestre: poesia e música.
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Em que ocasião você conheceu Teresa Cristina? Como nasceu sua vontade de apresentá-la ao grande público e fazer um show com a cantora carioca?
Quando eu estava ainda gravando o discoZii e Zie (lançado em 2009), chamei Teresa para participar de um dos shows de preparação. Era uma série de shows (e um blog na internet) que eu chamei de Obra em progresso. Ela tinha feito uma gravação linda de minha música Gema, e eu queria que cantássemos juntos. No ensaio, sugeri que fizéssemos mais de um número, talvez alguma coisa juntos. Fiquei impressionado com o conhecimento que Teresa tem de meu repertório. Ela sabe praticamente todas as minhas músicas, de qualquer período. Eu já a conhecia de breves encontros, do CD com sambas de Paulinho da Viola e do prestígio dela na noite da Lapa. Mas nesse encontro para o Obra em progresso foi que nos aproximamos de fato. Ela tem uma imensa cultura de música popular. De Dona Ivone Lara a Roberto Carlos, de heavy metal a canções dos anos 1930. Mas a ideia de apresentá-la pelo mundo surgiu pelo fato de o CD/DVD dela cantando Cartola ser lançado em escala mundial pela Nonesuch, a gravadora americana que distribui minha obra nos Estados Unidos. Eu tinha visto o show no Teatro Net Rio. Teresa e Carlinhos Sete Cordas mostravam uma joia de refinamento. O presidente da Nonesuch ficou encantado e sugeriu que eu fizesse um show/dobradinha com ela em Nova York. Daí vieram os convites para fazer em Chicago e Miami, e também em Seul, Osaka e Tóquio.
Quais músicas suas você não apresentava ao vivo há muito tempo (ou nunca apresentou) e mais gostou de reencontrar nesse novo espetáculo – e por que razão?
O critério para a escolha do repertório desse show foi cantar coisas que me parecessem importantes que não tivessem feito parte do roteiro do show com Gil, tão recente (a turnê Dois amigos, um século de música estreou em junho de 2015). Fiquei feliz de gostar de várias das canções de que me lembrei. Dentre as que eu não cantava há muito tempo, Tá combinado me impressionou muito pela clareza e fluência das palavras e pelo suingue da melodia. Mas os dois sambas tropicalistas, ambos de 1968, A voz do morto e Enquanto Seu Lobo não vem, são os mais fortes para mim. Músicas como Esse cara e Meu bem, meu mal me pareceram muito boas também. Gostei de ficar surpreso com minhas próprias canções.
Love for sale (composição do americano Cole Porter) e Cucurrucucú Paloma (do mexicano Tomas Mendez e cantada por Caetano no filme Fale com ela) são as canções estrangeiras do show. Que critério você usou para definir essas e as outras faixas do setlist, incluindo as que canta com Teresa?
Eu queria incluir uma canção em espanhol e uma em inglês. Quis cantar Cucurrucucú Paloma porque fazia um tempo que eu não a apresentava em shows – e este show é cheio de canções não tão conhecidas do público não brasileiro. Mas o fato de (Barack) Obama (presidente dos EUA) ter escolhido essa minha gravação para sua playlist me animou mais a confirmá-la. Há muita gente no mundo que só me conhece por essa interpretação da canção mexicana, por causa do filme de Pedro (Almodóvar, diretor de Fale com ela). Mas Obama é cool, uma figura pública cheia de charme e graça. Dentre as canções em inglês que canto, escolhi Love for sale porque é uma obra-prima da canção americana e porque eu a faço a capella, desde A foreign sound: isso enriqueceria a dinâmica do espetáculo, todo de voz e violão.
Voltando a Enquanto seu lobo não vem: a canção remonta ao álbum Tropicália, ao ano de 1968, quando os protestos dos estudantes em Paris e dos opositores da ditadura no Rio levaram multidões às ruas. Que paralelo você faz entre o simbolismo dessa canção à época de sua gravação e o instável momento político de hoje no Brasil e no mundo? Identifica um retrocesso?
Na época eram passeatas (era assim que se chamavam as manifestações) contra o governo militar. Em 2013, tivemos muitas demonstrações de rua grandes – e isso ecoa até hoje, inclusive com eventuais novas passeatas, mesmo que não tão grandes. O samba fala de resistência e medo. É interessante olhar a cara das pessoas na plateia enquanto eu a canto. É difícil falar em retrocesso. Os caminhos da história são complexos e inesperados.
Em 2016, completaram-se 30 anos do lançamento de Cinema falado. Que avaliação faz hoje da experiência como diretor de cinema e da recepção que o filme teve junto ao público e à crítica. Por que você não voltou a dirigir um outro filme?
A experiência de fazer o filme foi ótima. Sinto saudade das filmagens. Se eu fosse me julgar por esse filme acho que concluiria que ele não é suficiente para me assegurar o título de diretor de cinema. Tem umas coisa bonitas lá e alguns pensamentos sobre talvez fazer cinema que são interessantes. Eu tenho muita vontade de fazer um filme em Salvador, na verdade sobre Salvador. Mas fazer filmes é coisa demasiado trabalhosa e o ambiente do cinema é bem confuso. Música você faz até sem um violão. Filme você começa por arranjar dinheiro para ver se dá para fazer.
Aproveitando, que filmes você andou vendo recentemente e gostou?
Gostei muito de Cemitério do esplendor, do diretor tailandês Apichatpong Weeresathakul. E Boi Neon, de Gabriel Mascaro. E Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. EA grande aposta, de Adam McKay. E Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. E Boa sorte, de Carolina Jabor. E Casa grande, de Felipe Gamarano Barbosa.
Qual sua opinião sobre o Nobel de Literatura ter sido conquistado por Bob Dylan – e esnobado por ele?
Muito legal. Ele é muito engraçado! Tudo é muito engraçado.
Tem quem defenda que, na avaliação do mérito literário de um compositor, não se pode desassociar a poesia da melodia que a embala. Qual sua opinião?
Depende. Ouvi Antonio Cicero declamando Encontros e despedidas, letra de Fernando Brant para música de Milton Nascimento, e fiquei maravilhado. Quando era apenas uma canção, era bonita, mas não dava para perceber facilmente a força poética da letra tal como ela se revela na fala de Cicero.
Você identifica uma onda de conservadorismo e intolerância ganhando corpo com a eleição de Donald Trump para presidente nos EUA, de Marcelo Crivella como prefeito no Rio e com forças de direita em crescimento na Europa?
Há movimentações à direita. Mas já disse de público que não considero Crivella um retrocesso pelo fato de ele ser evangélico. Mesmo a eleição de Trump tem sua clara mensagem de repúdio dos trabalhadores americanos à globalização e ao abandono em que eles foram jogados. Sou fã de gente cool, como Obama. Sou mais como os nova-iorquinos e os californianos que querem a legalização da maconha, o casamento gay e a descriminalização do aborto. Odeio racismo e antigos preconceitos sexuais. Acho Trump brega, como todo mundo que eu conheço acha. Vejo o mundo em perigo com as coisas que ele disse durante a campanha – talvez principalmente o desprezo pela causa ambiental. Mas vejo as forças políticas e sociais que percebem essas modernagens como cobertura charmosa para uma globalização que as desrespeita.
Qual sua avaliação sobre a eficácia, prática e simbólica, das ocupações de escolas e prédios públicos como forma de protesto? Que ambiente você encontrou na apresentação que fez em uma dessas ocupações, na Funarte do Rio?
Tenho vontade de visitar uma escola ocupada. No Rio, tive até um convite para ir a uma, mas não tive tempo. Ainda não pude. Simpatizo com os adolescentes que ocupam escolas. Quero saber mais sobre o que eles pensam. No Palácio Capanema, foi uma noite emocionante e maravilhosa. Estavam protestando contra a extinção do Ministério da Cultura e me chamaram para cantar. O jeito do pessoal era muito bacana. Bem, o MinC voltou. E o (Marcelo) Calero, no fim das contas, apesar de brigar com o elenco de Aquarius (o então ministro criticou o protesto, feito no Festival de Cannes, contra o impeachment de Dilma Rousseff), virou a Clara do Porto da Barra e jogou cupim no apartamento de Geddel (Vieira Lima, titular da Secretaria de Governo, que acabou pedindo demissão por conta da crise instaurada após Calero revelar que foi pressionado para liberar a obra de um edifício em Salvador no qual Geddel comprara um apartamento).
Que avaliação você faz destes seis meses do governo Temer?
Eu nunca tive simpatia pela campanha do impeachment de Dilma. Peço a Deus que o Brasil possa se manter minimamente equilibrado para enfrentar as dificuldades e as turbulências. Preferiria ter tido de rezar assim pelo governo eleito de Dilma Rousseff.
Você faz uso das redes sociais? Que avaliação faz dessas ferramentas de interação que, para o bem e para o mal, são cada vez mais buscadas como fontes de informação e propagação de discursos. Você lê "textões" do Facebook?
Na verdade, nem sei o que seja um "textão". Não lido pessoalmente com redes sociais. Estou sempre por fora das gírias, do jargão. Só envio posts em ocasiões especiais. Meu Facebook, meu Twitter e meu Instagram são tocados pela equipe do escritório. Acho bom existir essa possibilidade de informar em primeira mão os interessados sobre minha agenda e, de vez em quando, sobre minhas ideias.