Que eles dominam a internet não é novidade. Pense quantas vezes você já não foi atingido, mesmo que de soslaio, por um viral ou meme protagonizado por um gato. Que reinam em milhões de lares também já é irreversível: afinal, todo tutor sabe que a casa não lhe pertence — o bichano que o deixa morar ali. Como se isso não bastasse, recentemente os felinos também estão conquistando espaço no livros.
Só para citar alguns títulos que chegaram ao Brasil nos últimos anos: Vou te Receitar um Gato (Intrínseca), de Syou Ishida; Se os Gatos Desaparecessem do Mundo (Bertrand Brasil), de Genki Kawamura; O Gato que Amava Livros (Planeta), de Sōsuke Natsukawa; Os Gatos do Café da Lua Cheia (Intrínseca), de Mai Mochizuki; Relatos de um Gato Viajante (Alfaguara), de Hiro Arikawa.
Além da óbvia presença felina nos títulos, há outro ponto em comum nessas obras: todas vieram do Japão. Tomoko Gaudioso, professora do curso de bacharelado em Letras — Tradutor Português e Japonês da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atesta que os gatos fazem parte da literatura do país há séculos.
Nascida no Japão, Tomoko se mudou com a família para o Brasil quando tinha três anos, tendo morado em Viamão e Porto Alegre. Aos 65 anos, ela está trabalhando em uma coletânea de contos japoneses que envolvem gatos. Tomoko já traduziu, anteriormente, os best-sellers Se os Gatos Desaparecessem do Mundo e Uma Noite na Livraria Morisaki (Bertrand Brasil).
No período moderno, como ela acrescenta, a imagem do bichano passou a ser cada vez mais positiva, principalmente com o romance Eu Sou um Gato (1906), de Natsume Soseki — livro narrado por um felino. A partir daí, o gato começou a ser um tipo de filtro para uma crítica ou análise social.
— Passou a se reforçar a ideia de que os gatos também observam, como um animal que dialoga com os seres humanos e que está presente na nossa vida — destaca Tomoko.
Nascido na Alemanha, mas tendo crescido na Inglaterra, o escritor Nick Bradley escreveu sua tese de doutorado sobre gatos na literatura japonesa. Ele frisa que o gato está presente em um dos romances mais antigos do mundo: Genji Monogatari, de Murasaki Shikibu, escrito no começo do século 11. Bradley sublinha que os bichanos não eram comuns no Japão e foram trazidos em navios junto com escrituras budistas da parte continental da Ásia.
— A finalidade dos gatos era proteger as escrituras de serem comidas por ratos nas embarcações. Ao chegarem ao Japão, eram levados com as escrituras para vários templos ao redor do país. Isso deu origem a contos populares envolvendo amizades entre gatos e monges budistas — explica o escritor.
Aliás, as ficções com gatos ambientadas no Japão também podem ser escritas por um gaijin (quem vem de fora do país). Bradley é autor de Um Gato em Tóquio (VR Brasil), que sorve inspirações da literatura japonesa. Já a húngara Anna Sólyom é autora de Neko Café (VR Brasil), que se passa em uma cafeteria japonesa com felinos em Barcelona.
Quem resiste?
A ficção japonesa com felinos tem se firmado como uma forte tendência editorial. Segundo Marina Ginefra, editora de aquisições da Intrínseca, Vou te Receitar um Gato vendeu mais de 25 mil exemplares desde o lançamento em julho. Já Os Gatos do Café da Lua Cheia ultrapassou a marca de 10 mil vendas pouco mais de um mês após o lançamento, em setembro.
Essa tendência pode ser vista como um desdobramento da "ficção de cura", que, como descreveu reportagem de Zero Hora publicada em junho, “se propõe a oferecer histórias capazes de confortar os leitores e fazê-los enxergar a vida sob uma perspectiva otimista”, além de focar no crescimento pessoal e na autodescoberta.
Costumeiramente, essas narrativas são leves e se passam em espaços agradáveis — como cafés, bibliotecas e livrarias —, contendo capas que costumam ser aconchegantes e, muitas vezes, trazendo um bichano estampado. Afinal, quem resiste a um livro com um gato na capa?
— O mercado asiático é referência em ficção de cura, já que valoriza histórias mais introspectivas e reflexivas. E os gatos são personagens bastante comuns nessas narrativas. Assim como a presença de um pet na vida de uma pessoa, são um dos motivos que tornam essas histórias terapêuticas — pontua Marina.
Conforme Tamires von Atzingen, gerente-executiva editorial da VR Editora, há um crescente interesse do público leitor por ficções envolvendo gatos, especialmente por histórias que abordem cura emocional e jornadas de autodescoberta.
Ela adiciona que, entre editores, há sempre uma atenção ao que os leitores desejam ler e adianta que estão previstos mais livros com gatos. Um deles é Quatro Estações no Japão (título provisório), de Nick Bradley, que será lançado em maio de 2025.
Por sua natureza intuitiva e independente, os gatos são animais que evocam um ar de conforto e companhia, como observa Tamires. Contudo, não exigem o mesmo nível de atenção que um cachorro, e é por isso que são tão presentes na ficção de cura.
— Os felinos colaboram com a construção do cenário ideal para personagens que estão em busca de paz ou de aceitação durante um processo de cura. Por sua presença tranquila e comportamento observador, os gatos também representam a capacidade de acolher sem julgar, algo que pode ser profundamente terapêutico tanto para personagens quanto para leitores — argumenta Tamires. — Essa combinação de serenidade, independência e mistério transforma os gatos em figuras perfeitas para simbolizar a jornada de cura pessoal.