No ensaio Um Teto Todo Seu (1929), Virginia Woolf defendeu que a mulher tivesse seu próprio espaço físico e tempo reservado para sentar-se e escrever. Ou seja, um teto todo seu para que pudesse cavar seu lugar na literatura e sobressair-se tal qual os homens faziam há séculos, não por uma aptidão que lhes fosse exclusiva, mas porque a eles foi dada a alforria das tarefas do lar e o ócio necessário para que exercessem sua criatividade e intelectualidade.
Quando a escritora Claudia Tajes e a psicanalista e escritora Diana Corso decidem sentar-se e escrever uma para a outra, transformando suas cartas em um livro de dupla autoria, potencializam o pedido da antecessora britânica, que foi uma das maiores autoras do século 20, e conquistam ainda mais hectares nesse terreno literário já amplamente desbravado por elas.
Em Da Sempre Tua (Arquipélago Editorial, 192 páginas, R$ 59,90), Claudia e Diana trocam correspondências e expõem aos leitores vulnerabilidades e inadequações de duas mulheres na meia-idade que são mães, amigas, namoradas, esposas, profissionais e, acima de tudo, seres humanos.
Misturando realidade e ficção, Claudia, que assume o codinome C., desintegra-se pela culpa e sensação de fracasso por ser quem é e por sentir o que sente, enquanto Diana, que é D., busca levantar o moral da amiga em uma troca sarcástica e honesta que transforma falhas e faltas em atestados imprescindíveis de que estão vivas.
— Assim como a C., eu ainda não me acostumei com a ideia de envelhecer, embora espere ter uma longa vida para entender isso. A C. começa o livro demitida de uma agência de propaganda, e eu recém havia sido comunicada de que o meu contrato com a Globo não seria renovado depois de quase 15 anos. Bom, nem o da Fátima Bernardes foi renovado, imagina o meu. Então, muitas das minhas mágoas acabaram refletidas nas cartas da C. — diz Claudia, que é colunista de GZH.
Escritoras experientes na vida real, cada uma com uma porção de livros publicados, elas tornaram-se amigas porque a filha de Diana, Júlia, tinha verdadeira admiração pelos livros de Tajes. Aproximaram-se aos poucos, até surgir a ideia de misturar os talentos. Na pandemia, criaram o podcast Eu te Conto um Conto, disponível nas plataformas de áudio. Mas a vontade de se comunicar por cartas, inventando alter egos, permaneceu.
— Passamos realmente a mandar cartas uma para a outra, embora tivéssemos claro que era o projeto de um livro. Eu parava tudo para responder e ficava ansiando pela próxima carta da Claudia. Inventamos as personagens C. e D., que somos nós, acrescidas da liberdade poética. A Claudia foi me oferecendo seu suporte como escritora, e eu entrei como psicanalista. Por isso, a mal disfarçada personagem dela é uma espécie de escritora sem muito sucesso, o que é mentira, e a minha é uma psicanalista neurótica, o que é verdade — diz Diana.
Além do deboche elegante, Diana lança observações pertinentes sobre a figura masculina, colocando-os em trajes mais simples do que estamos acostumados a ver — em contraposição, mulheres em sofisticada personalidade. "Não creio que a maior parte dos homens aprecie demasiadas verdades. Eles são muito dependentes da adulação para suportar nosso pensamento ferino, que aprenderam a temer. Talvez eles estejam certos, piram menos", escreve.
Claudia, que encarna muito bem a persona aflita com suas próprias sombras, chega até a inventar um nome para a culpa que sente a todo momento: Corina. "É a Corina que não deixa esquecer o meu relacionamento com minha mãe, por exemplo. Se minha mãe falava do Big Brother, eu fechava a cara. Se falava de doença, eu me irritava. Se falava de pessoas que não me interessavam, eu dava uma patada e encerrava o assunto. Aí minha mãe morre cedo demais e eu fico aqui, me remoendo com a Corina".
Na profunda intimidade que se cria entre uma carta e outra, entre um ato de genialidade com as palavras e uma confissão de moer o coração, Diana e Claudia celebram uma das relações mais importantes para a mulher do século 21: a amizade feminina, laço antigo muitas vezes distorcido e malfalado, talvez, pelo poder que detém.
— Aceitamos que se dissessem coisas terríveis sobre a relação entre as mulheres: que só sabemos competir por homens, que somos víboras umas com as outras. A difamação da amizade feminina, discurso que tantas reproduzem, fez parte dessa clandestinidade da rede de solidariedade que sempre nos foi imprescindível. Em muitas épocas, as cartas foram os únicos escritos que restaram para contar a história das mulheres. Com as cartas, elas conseguiam transpor os obstáculos sociais que as impediam de conviver mais — diz Diana.