Quando não há pacientes para atender, a psicóloga Paula Caroline da Silva, 29 anos, caminha 200 metros do consultório na Rua Andrade Neves até a Riachuelo, no Centro Histórico de Porto Alegre. Usa os 60 minutos do intervalo para percorrer as estantes da Biblioteca Pública do Estado e deixar os olhos vagarem entre 20 mil títulos disponíveis para empréstimo. Leitora voraz, com óculos de lentes grossas por causa do alto grau de miopia, raramente compra obras em livrarias ou na internet. Preza pelas páginas amareladas, marcadas por outras mãos, às vezes rasgadas e rabiscadas com recados e confissões de quem se debruçou sobre aquela história antes dela.
— Prefiro o cheiro de livro antigo. Parece que tem cheirinho de poeira.
Aos 29 anos, Paula é uma das frequentadoras mais regulares da Biblioteca Pública. Dentro de um ano, pediu 22 empréstimos de livros. Além de levar obras para casa sem pagar nada por isso, beneficia-se do sossego e da atmosfera arcaica do prédio erguido em 1922, com um saguão adornado por colunas gregas, retratos de Erico Verissimo, Lya Luft e Moacyr Scliar, além de grandes mesas de madeira, onde é possível se sentar em poltronas estofadas e ler como se o tempo que transcorre causando urgência só existisse lá fora.
Aposentado e com mãe e tia hospitalizadas, Ernando Morandi não pode pagar por livros. Quando quer escolher novas leituras, pega ônibus da Zona Sul para chegar à Biblioteca Pública. Aos 46 anos, é o leitor mais assíduo, com uma média de 28 pedidos de empréstimo por ano. Em dezembro passado, quando o espaço ficou fechado por 15 dias para que o acervo de livros fosse transportado do porão na Rua General Câmara para o saguão principal, com entrada pela Riachuelo, Ernando surgiu na janela do prédio e, aos sussurros, pediu que um funcionário o entregasse alguns exemplares por ali. Com cadastro regular e conhecido dos bibliotecários, teve o pedido atendido.
— Livros não são só para passar o tempo. São um refúgio para mim. É como se só a vida não bastasse.
Em épocas de rostos capturados pelas telas dos celulares e rotinas ditadas pela velocidade da tecnologia, a Biblioteca Pública é destino de uma minoria que ainda procura se sentar e se deixar conduzir por histórias registradas em papel já desgastado pelo tempo. Cerca de 7,5 mil pessoas mantêm cadastro ativo no acervo mais antigo de Porto Alegre, em atividade desde 1877, o que representa cerca de 1% dos 724 mil leitores da Capital identificados pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2020, que considera leitor quem leu ao menos um livro nos últimos três meses.
Apesar de o empréstimo de livros parecer um hábito em extinção, a Biblioteca Pública registrou crescimento no número de pedidos, passando de 1.247 obras retiradas em 2022 para 3 mil em 2023, aumento de 140,6%. Diretora do espaço, a bibliotecária carioca Ana Maria de Souza diz que os frequentadores têm características e idades variadas, entre jovens e idosos, estudantes em busca das leituras obrigatórias para o Vestibular e moradores de rua que encontram ali um abrigo do mundo hostil e a oferta de algumas horas de cultura.
— As pessoas acham que biblioteca é uma coisa que morreu, mas muitos dos nossos leitores vêm devolver livros e, nessa visita, já levam títulos novos para casa. Imagina quanto custaria manter esse hábito se tivessem que pagar por eles?
Considerando-se avesso à tecnologia no auge da juventude, Murilo Neves, 18 anos, aproveita o fato de morar nas redondezas do Centro Histórico para, a cada duas semanas, passar na Biblioteca Pública. A cada visita, leva consigo dois livros. Já pediu 21 empréstimos em pouco menos de um ano.
— Sou analógico. Odeio livro digital. Quanto mais tempo fora de tela, melhor.
Os olhos pregados em um tomo volumoso de Honoré de Balzac, o auxiliar de cozinha João Carlos dos Santos, 37 anos, mantinha-se impassível às idas e vindas de quem se movimentava pelas mesas de leitura em direção ao setor de empréstimos ou ao ruído sutil e constante das pás dos ventiladores tentando refrescar o saguão abafado por uma tarde quente de fevereiro, quando a reportagem esteve no local. Levou segundos para desviar o rosto das páginas e responder se vinha sempre ali. Disse que, nos últimos três meses, logo que descobriu que o acervo oferecia obras de literatura e filosofia, como A Rebelião das Massas (1929), de José Ortega y Gasset, passou a fazer visitas de três a quatro vezes por semana, sempre com a intenção de escapar de casa e da conexão com a internet e, assim, focar exclusivamente na leitura.
— Quero adquirir o hábito de treinar a minha memória e chegar um pouco mais longe como ser vivo.
Como retirar livros na Biblioteca Pública do Estado:
- Mediante cadastro, apresentando documento com foto e comprovante de residência, com pagamento de taxa única de R$ 10.
- É permitido levar para casa dois livros por vez.
- Transcorridos 15 dias do empréstimo, é obrigatório devolver os livros ou renová-los.
- A Biblioteca Pública do Estado fica na Rua Riachuelo, 1.190, em Porto Alegre, e funciona de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos sábados, das 10h às 17h. Contatos: (51) 3221-6308 e (51) 3221-7245.