Por Luis Alberto Brandão
Escritor, professor da UFMG, pesquisador do CNPq e da Fapemig. Autor, entre outros, de “Canção de Amor para João Gilberto Noll” (Relicário, 2019)
Não é incomum que uma premiação literária gere dissenso, por parte não apenas dos defensores de quem não foi premiado, mas também dos que criticam o sistema avaliativo adotado ou a própria existência de premiações. Em casos específicos, o dissenso fica mais forte e chega a configurar uma espécie de controvérsia pública. No último dia 5, o Prêmio Jabuti, completando 65 anos, realizou a cerimônia de premiação dos vencedores entre os livros editados em 2022.
Nas redes sociais que frequento, compostas em sua maioria por pessoas do meio intelectual e artístico, rapidamente se formou uma polêmica que vem destacando, entre outros aspectos, que o prêmio de melhor livro de contos foi concedido a um autor morto.
Autor morto? A expressão me causou estranhamento, talvez por ter me lembrado do “defunto autor” de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Minha lembrança machadiana deve ter sido uma reação à crítica ao suposto passadismo do Jabuti, já que, conforme os polemistas enfatizam, além de um “autor morto”, foram premiados um livro de sonetos e um romance ambientado no século 19. Estaríamos vivendo um surto passadista? Achei curiosa a alegação, apesar de pouco plausível, pois, segundo as regras atuais do Jabuti, cada categoria tem seu júri, não há interação entre eles, nem entre os membros de cada um. Assim, só se fosse mesmo um surto, um fenômeno inexplicável, acima de determinações racionais.
Como não li o livro de poemas e o romance premiados (será que os polemistas leram?), não posso opinar. Mas o livro de contos eu já havia lido, com prazer e espanto intensos, ou melhor, com o prazer que só o espanto consegue gerar. À época, meados do segundo semestre de 2022, não tive dúvida de que se tratava, disparado, do melhor livro brasileiro que eu lera naquele ano. O título premiado? Educação Natural, volume de 26 contos e um romance inacabado. O nome do autor (morto)? João Gilberto Noll.
Prêmios literários (por isso o adjetivo) avaliam obras, não autores. Certo? Ou não? É possível acreditar que o universo traduzido pelo nome de um autor (seu lugar social, sua atuação midiática, seu lastro editorial, o conjunto de sua produção etc.) é tão ou mais relevante do que o universo traduzido pelo que se entende por obra: um universo singular de palavras que, de múltiplas formas, se articula a universos extraverbais. Mas também é possível pensar o oposto: é somente por causa da força de uma obra específica que qualquer referência a quem a concebeu e materializou passa a fazer sentido. No campo literário (que é público, não privado), saber que Noll morreu em março de 2017 pouco interessa a quem se entrega à vitalidade dos efeitos de leitura produzidos por alguma obra por ele assinada – por exemplo, o pulsante e vigoroso organismo verbal intitulado Educação Natural.
Prefiro o segundo modo de pensar. Para mim, a assinatura Noll é resultado de seus livros, não o contrário. Noll é a criatura, da qual seus livros são os criadores. Essa inversão fica ainda mais nítida quando se sabe que o atual prêmio é seu sétimo Jabuti. Desde o primeiro, em 1981, para o já clássico O Cego e a Dançarina, as premiações ao nome Noll atravessam mais de 40 anos, nos quais o Jabuti passou por diversas transformações, envolveu inúmeras pessoas, com diferentes perfis. Por isso, é inverossímil supor que o que está em jogo é a preferência por um autor (vivo ou morto) e não o impacto literário que cada obra produz, em distintos contextos, em vários grupos de avaliadores. O que a longa série de premiações demonstra é a incontestável força da singularidade literária das obras.
Para além da singularidade, porém, será que não há elementos comuns, que identifiquem uma marca autoral, um estilo de escrita, um projeto estético consistente e unificável em sua diversidade? A pergunta extrapola o debate sobre prêmios e polêmicas. Ela só pode ser respondida mediante uma investigação mais vasta, de natureza crítica, como a que venho publicando do meu trabalho de pesquisador. Aqui, neste breve espaço, limito-me a afirmar minha conclusão de que a obra de Noll é uma das mais poderosas da literatura brasileira de todos os tempos.
E que Educação Natural é um grande livro, um livro vivíssimo, um presentão para a cultura brasileira. À maneira do próprio Noll, de uma obra que propõe transgredir limites supostamente incontestáveis, afirmo-o como um autor não apenas vivo, mas que ultrapassa o que se entende por vida e por morte. Um autor mais que vivo.