Meu desafio estava localizado a apenas 35 passos de distância do monumento dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana na Praça da Alfândega. Era um sinal alvissareiro, pois olhando para aquelas esculturas em bronze de dois dos mais representativos nomes da literatura brasileira, eu provavelmente não me sentiria tão desamparado.
Na sexta-feira (10), minha missão como repórter na Feira do Livro de Porto Alegre seria um pouquinho diferente. Propus na redação integrada de GZH passar uma tarde inteira em uma das bancas do evento para mostrar a realidade de quem atua no outro lado do balcão.
Diariamente, apresentamos o que pensam e como se comportam visitantes e escritores. Mas e a rotina dos livreiros? Escolhemos uma das mais tradicionais editoras — a L&PM, conhecida especialmente por oferecer livros no formato pocket e estar perto de completar 50 anos de existência.
Combinamos que eu teria a oportunidade de compartilhar com os funcionários da editora o espaço de cerca de cinco metros de comprimento por outros três de altura, e a experiência das vendas das 14h às 18h. Foram quatro horas bastante intensas e de algumas surpresas. Tive a companhia da coordenadora da barraca, Daice Führ, 60 anos, e de outros dois atendentes — Giovane Andrade, 37, e Valdirene Souza, 48. Mas aos finais de semana, em função do aumento de público, pode haver reforço no número de pessoal.
Cheguei ao local, cumprimentei os colegas e larguei minha mochila em um canto. Com bloco de anotações e caneta na mão, rapidamente acompanhei quais foram os primeiros livros vendidos — Brasil: Terra à Vista!, de Eduardo Bueno; e Contos Gauchescos & Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto. Os dois foram comprados pela mesma pessoa.
Ao contrário de outras editoras, os preços dos livros da L&PM ficam na primeira página. Descobri que o motivo para aparecer os dois valores, o normal e o com desconto de 20%, é para estabelecer conexão com o provável comprador. Sem saber qual é o valor, o leitor pede informações para o atendente. Dessa maneira, estabelece-se um vínculo. Eu nunca havia pensado nisso.
Outra estratégia descoberta durante minha experiência: se algum leitor pega um pocket na mão e hesita na compra, o atendente logo oferece o mesmo livro na versão comum ou até no formato de história em quadrinhos. Algumas pessoas acabaram seduzidas dessa forma.
Meu receio durante as quatro horas em que fiquei na barraca era sentir calor ou dor nas pernas. Com a temperatura de 27°C, a mais alta que observei na sexta-feira, não sofri nesse quesito. Houve algum desconforto em relação às pernas por ficar de pé o tempo inteiro. Não sentei e também não deixei o estande em nenhum momento. Queria sentir o que meus colegas sentiam diariamente no atendimento aos visitantes.
Tentar identificar um perfil de comprador se tornou uma tarefa quase impossível. Percebi que o público variava entre mães com crianças pequenas, adolescentes em grupos, casais, pessoas de meia-idade e idosos. Ora eu era um mero observador, ora eu colocava a mão na massa. Vendi alguns exemplares, sugeri dicas de leituras e dei outras informações.
Tive algumas surpresas. Uma delas foi ver o interesse das pessoas pelos livros da escritora inglesa Agatha Christie. Sei que ela sempre foi uma recordista de vendas, mas mesmo assim não esperava tanta procura por suas obras. E também me surpreendi ao perceber que dois livros que adoro — A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, e O Capote, de Gogol — não terem saído durante o tempo em que permaneci na banca.
Um homem chegou ao local e desejava dicas de livros para dar de presente para a namorada médica. Só não queria alguma obra que tivesse como tema a medicina. Ao escutar isso, segurei o exemplar que pretendia sugerir: A Fabulosa História do Hospital - Da Idade Média aos Dias de Hoje, de Jean-Noël Fabiani.
Uma senhora queria o livro Caderno H, de Mario Quintana, que a L&PM não vende. Sugeri ela procurar na Livraria Taverna, na Casa de Cultura Mario Quintana, onde eu sabia que tinha. Outra pessoa perguntou se havia o livro Antes que o Café Esfrie (editora Valentina), do autor japonês Toshikazu Kawaguchi. Indiquei a Rogil, banca na qual eu havia visto alguns exemplares.
Outro questionamento inusitado foi de uma senhora. Ela perguntou se o livro A Divina Comédia, de Dante Alighieri, era sobre "aquelas coisas de religião." Ainda que tenha a presença de céu, inferno e purgatório, anjos e demônio, respondi que não. E ainda fiz uma tremenda propaganda para o autor morto há mais de 700 anos:
— Trata-se de uma das mais importantes obras da história da literatura.
Lembro que estufei o peito ao falar isso. Li A Divina Comédia em duas oportunidades. Mas confesso que, no meio do tumulto das vendas, não percebi se essa senhora acabou levando ou não o livro.
Também teve um pedido de informação mais curioso. Uma senhora queria saber onde ficava a banca do Pequeno Príncipe. Percebi que todos os atendentes se olharam sem entender a situação. Apressei-me em indicar o estande da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), onde sabia que havia uma exposição de trabalhos de alunos de escolas com essa temática e até um avião construído e inspirado no clássico O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry.
O que se pode escutar estando de frente para tantos leitores diferentes é sempre inesperado. Lembro que ouvi a frase:
— Guerra e Paz, todo leitor que se preza, lê.
Era um inegável elogio ao livro de Liev Tolstói. E ao mesmo tempo parecia aquelas frases de campanhas publicitárias.
Também percebi a surpresa de alguns jovens ao descobrirem que a L&PM vendia o livro O Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau, na versão em mangá. E o último exemplar que vi ser vendido foi Quintana de Bolso, de Mario Quintana.
O que mais gostei foi ver o interesse de tantas pessoas pelo livro físico e por obras clássicas que sobreviveram à passagem do tempo. Foi uma experiência que só intensificou em mim a paixão pelos livros e pela literatura. Despedi-me dos colegas, agradeci por compartilharem sua rotina e ainda fui presenteado. Pude escolher um exemplar entre as dezenas de títulos. Optei por Chernobyl - 01:23:40, de Andrew Leatherbarrow, que trata do pior acidente nuclear da história. Será minha primeira leitura de férias.
Curiosidades sobre a experiência
- Às 18h, quando deixei a banca, 215 livros já tinham sido vendidos desde as 10h. Em minhas anotações, contabilizei em torno de 130 exemplares comercializados no período em que auxiliei os colegas
- Durante as quatro horas em que permaneci no estande, não vi nenhum amigo visitar o local. Pouco antes das 16h, o patrono da Feira do Livro, Tabajara Ruas, passou em frente à banca
- Vendi alguns livros, mas conforme combinado previamente com os atendentes, eu não poderia registrar a venda no computador nem tinha permissão para manusear a máquina para pagamento no cartão. É preciso treinamento para isso, e eu poderia atrasar o processo das vendas
- Muita gente paga com cartão de débito ou crédito. Mas vi pagamentos por PIX e muitos feitos em dinheiro. Um rapaz queria dar um vale-livro que recebeu do Tabajara Ruas para pagar um livro, mas a L&PM não participava da ação
- Quase 20 pessoas se aglomeravam olhando os exemplares expostos no balcão e na caixa de saldos em alguns momentos
- A coordenadora Daice Führ me explicou que, em função do sucesso entre os leitores, os livros da Agatha Christie precisam ser repostos diariamente. Contei mais de 60 títulos diferentes da autora disponíveis na banca
- Mas Conversa na Sala, de Martha Medeiros; Se For para Chorar, que Seja de Emoção, de J.J. Camargo; e Náufragos, traficantes e degredados, de Eduardo Bueno, estavam entre os mais vendidos na barraca
- O editor Ivan Pinheiro Machado chegou ao estande e conversamos por alguns minutos. Perguntei se ele pensava em algum dia oferecer ao público todos os livros de Mario Quintana, e ele respondeu que não. E lembrou que os direitos de publicação pertencem à Editora Objetiva
- Também questionei se a L&PM não pretendia relançar com imagens o Enterrem Meu Coração na Curva do Rio - A dramática história dos índios norte-americanos, de Dee Brown. Aliás, o David Coimbra já havia sugerido isso há muitos anos. O Ivan Pinheiro Machado afirmou que não pensa nessa hipótese
- E o Ivan Pinheiro Machado ainda fez uma reflexão importante sobre estar presente na Feira do Livro: "Isso aqui é como um laboratório. Aqui a gente, que é editor, aprende"
- A L&PM estima que as vendas totais nesta edição da Feira devam ficar entre 4 mil e 5 mil exemplares.
Alguns livros comercializados por mim
- Células-Tronco - Uma breve introdução, de Jonathan Slack
- A Ferro e Fogo I - Tempo de Solidão, de Josué Guimarães
- Uma Breve História da Ciência, de William Bynum
- Sobre a brevidade da vida, de Sêneca
- Além do bem e do mal, de Friedrich Nietzsche
- E Não Sobrou Nenhum E Outras Peças, de Agatha Christie
- Mistério no Caribe, de Agatha Christie
- A Noite das Bruxas, de Agatha Christie
- Convite para um Homicídio, de Agatha Christie
- Morte no Nilo, de Agatha Christie
- Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie
- Uma Breve História da Literatura, de John Sutherland
- Cartas a Théo, de Vincent Van Gogh
- Pollyanna, de Eleanor H. Porter
- Hamlet, de William Shakespeare
- Poesias, de Fernando Pessoa
- Futebol ao Sol e à Sombra, de Eduardo Galeano
- História das Ideias e Movimentos Anarquistas, de George Woodcock
- A Metamorfose, de Franz Kafka (foram dois exemplares para leitores diferentes)
- Manifesto do Partido Comunista 1848, de Mark & Engels (foram dois exemplares para leitores diferentes).
O que os atendentes pensam sobre trabalhar na Feira do Livro
Daice Führ, que tem 43 anos de experiência na Feira do Livro:
— Para o bom atendimento, nada melhor do que ser simpático e conhecer o produto que a pessoa quer. Isso tudo compensa quando tu fazes a venda, faça frio ou faça calor. Tudo isso compensa quando o cliente sai satisfeito.
Giovane Andrade, que já esteve em outras edições do evento:
— A Feira nos traz satisfação de ver que conseguimos atender o cliente com o que ele veio procurar. Para nós, a questão mais difícil é o cansaço. Nesses dias de Feira, entregamos um pouco mais. Mas a satisfação compensa no final.
Valdirene Souza, que estreou no atendimento na Praça da Alfândega:
— O mais legal é interagir e conhecer pessoas novas. Gosto muito de atender o público. A dificuldade é ficar em pé, e o calor, às vezes. Mas tu vais conversando e atendendo, e vai passando. Fica tranquilo.