Tributo ao pai do autor, o livro O que É Meu, de José Henrique Bortoluci, transcorre em um texto belíssimo, sensível e comovente. O sociólogo de 38 anos gravou entrevistas, complementadas com anotações e diálogos da convivência, em um período duplamente desafiador: o idoso de 78 anos, já com a saúde debilitada, enfrentava o tratamento de um câncer grave no intestino durante a pandemia. Bortoluci fala do caminhoneiro que correu o Brasil por décadas, testemunhando parte da história a partir da beira da estrada, e também do país.
– Escrevi entre duas devastações. A solução para isso foi trabalhar o câncer não só como um fato a ser abordado, no caso do meu pai, mas como uma metáfora para o estado de coisas no Brasil do governo Bolsonaro e da pandemia – ele diz, na entrevista a seguir.
A ideia de entrevistar seu pai para o livro surgiu antes do diagnóstico do câncer. O projeto foi alterado de alguma forma por conta disso?
A ideia de entrevistar o meu pai é antiga, anterior à ideia do livro. Eu queria muito ter um registro das histórias todas dele, de tudo o que ouvi, e eventualmente ouvi-lo contar outras histórias que eu nunca tinha ouvido, porque achava que tinha um valor de registro em si e também um pouco da minha história de sociólogo. Desde adolescente, tinha alguma ideia de fazer alguma coisa com essas histórias. Entre 2019 e 2020, se condensou a ideia de escrever um livro. Comecei a escrever um projeto lá por setembro de 2020, e o câncer foi diagnosticado em dezembro. No mesmo dia em que falei para ele que gostaria de gravar entrevistas para depois escrever um livro, primeiro ele disse que não tinha o que contar. Aí falei: “Mas e aquela história, pai?”. Aí ele começou a contar história e não parou. Esse dia em que ele topou foi o mesmo em que me falou que estava sentindo dores no abdômen. Levamos ele ao médico. Claro que o diagnóstico mudou muita coisa. Nesse momento, eu já sabia que escreveria o livro no próximo ano e meio, mais ou menos, e isso seria feito, percebi logo de cara, durante todo o tratamento. As coisas se somaram. Acho que isso tornou o livro mais pessoal, mais lírico, talvez. Tratou mais dos temas do corpo, da saúde, do impacto do trabalho de caminhoneiro na saúde dele e dos amigos – a maioria já morreu ou tem problemas sérios de saúde. Ficou uma escrita de mais intensidade, mais angustiante – a dúvida sobre a vida dele que está no livro era uma dúvida da minha escrita mesmo.
Sua família enfrentou o câncer dele em plena pandemia. Como foi?
O tratamento atrasou três meses porque o hospital se tornou um hospital covid. Só cirurgias de urgência estavam sendo feitas. Depois, toda a angústia de uma pessoa passando por uma série de procedimentos médicos, com a saúde abalada, tendo uma soma de comorbidades e frequentando um hospital lotado. Um medo muito grande de que ele se contaminasse. Fiz 1 milhão de testes. Toda vez que ia para Jaú (no interior de São Paulo), fazia testes, com medo de levar o vírus. E o terceiro impacto que foi o de escrita. Coloco isso no começo do livro: escrevi entre duas devastações. A solução para isso foi trabalhar o câncer não só como um fato a ser abordado, no caso do meu pai, mas como uma metáfora do estado de coisas no Brasil do governo Bolsonaro e da pandemia.
Você sempre foi muito preocupado com a saúde do seu pai, desde pequeno. Jogava fora os maços de cigarro, cuidava o que ele comia após a primeira cirurgia cardíaca... Como isso o marcou ao longo do tempo?
Muitas das preocupações da minha mãe acabaram se tornando preocupações nossas. Meu irmão também é muito preocupado. Acho que não cuidar da saúde é muito típico da masculinidade da geração dele: fumaram muito, beberam muito, comida muito pesada. É uma mistura com algo da vida do caminhoneiro mesmo, uma rotina de improvisação, de cozinhar na estrada...
Fazer churrasco no escapamento do caminhão (risos)...
Sim, churrasco de escapamento é uma história incrível, muito divertida. (Ele teve) Uma vida de muito peso sobre o corpo. Acho que isso fez com que tivesse um infarto aos 48 anos que quase o matou, muito jovem, e isso criou preocupações muito grandes para a minha família e uma observação sobre ele. Hoje sou muito mais tranquilo com isso, sei que são escolhas dele, mas quando eu era menor era uma preocupação muito grande.
“Herdamos os tesouros e os terrores das palavras de nossos pais e mães, de parentes mais velhos e daqueles que vivem em seu entorno.” Você teve pais com pouco estudo. Seu pai, especialmente, tem o discurso fielmente retratado no livro, com os erros que comete. Imagino que não tenha sido uma escolha difícil registrá-lo falando assim, não? De outra forma, não seria fiel ao personagem.
Gravei não sabendo como iria usar as entrevistas. A partir de muitas leituras das transcrições, tentei ser o mais fiel possível ao ritmo da fala, às concordâncias da forma que ele usa, ao vocabulário. Mas mesmo a transcrição já é uma série de escolhas, já é uma tradução. Já que falo tanto de linguagem no livro, que exerceu um papel tão importante na conexão entre gerações, mas também faço uma reflexão sobre classe, não me parecia fazer sentido transformar o registro oral dele em um registro erudito, uma forma padrão, acadêmica, da língua portuguesa. Me pareceria uma traição a um dos propósitos do livro, que é entender as proximidades e distâncias de duas vidas muito diferentes. Então isso foi uma escolha, não de início, mas depois, quando comecei a ler e reler, a trabalhar as transcrições. No livro, pouquíssimos trechos são, de fato, transcrições. A grande maioria são reelaborações a partir das transcrições, tentando manter ao máximo o ritmo da fala, o vocabulário, as formas de regência e concordância, e alterando algumas coisas, como manter amigos dele no anonimato. Então foi um trabalho literário mesmo na construção dessa voz do meu pai, que foi diferente do outro trabalho literário, a minha voz no texto. Marcar essas diferenças e apontar os encontros, e fazer isso não só no conteúdo, mas na forma também.
Tratando das diferenças entre pai e filho, você fala em “abismo” no texto. São vários, não só o da linguagem. Vocês foram se distanciando em classe social, nível de educação. O livro dá um exemplo belíssimo no começo: o seu pai não entenderia a sua vida acadêmica, indo morar nos EUA para o doutorado, mas de distância ele entende, já percorreu 8 mil quilômetros muitas vezes. Como você equacionou, ao longo da vida, essas muitas distâncias entre você e seus pais?
Isso não é linear na vida. Acho que tem isso em qualquer família. Quando tem uma migração de classe muito dramática, a distância vai se acentuar, os desencontros e as tentativas de encontro. Cada família vai construindo e derrubando pontes, o tempo todo. Meus pais foram muito generosos ao tentar entender esse mundo que habito ou não fazer questão de entender mas mesmo assim respeitar. Essas pontes foram sendo criadas aos poucos. Tenho interesse pelo universo deles, pela história do meu pai, pelo dia a dia da minha mãe. Há lugares de encontro. Encontro da comida: a comida é muito importante na minha família. Preparar a comida, escolher o prato, falar sobre isso. Não falo isso no livro, mas, durante esse processo todo, eu e meu irmão compramos uma casa para os meus pais. Esse foi um outro lugar de construção mais recente. É uma casa para nós também, quando os visitamos. É uma tessitura lenta, um bordado de como as nossas vidas podem se cruzar. Claro que isso passa pela linguagem, mas outro modo para isso é o amor. O amor é linguagem também.
Tem isso em qualquer família. Quando tem uma migração de classe muito dramática, a distância vai se acentuar, os desencontros e as tentativas de encontro. Cada família vai construindo e derrubando pontes, o tempo todo.
Você percorre historicamente o tempo de vida do seu pai e também lança um olhar sociológico sobre os caminhoneiros. Como se deu a escolha por esse caminho? E como escolher um caminho diante do fato, apontado no livro, de que poucos temas foram mais tratados na história da literatura do que a relação entre pais e filhos?
Acho que uma coisa importante foi a decisão inicial, uma hipótese inicial, de que seria um livro sobre meu pai e meu país, um livro de cruzamento entre pai e país por conta da história muito particular dele como trabalhador em um momento histórico muito importante na construção do território brasileiro. Ele começa a trabalhar em 1965, um ano depois do golpe militar, e está nas estradas durante o período do boom das obras da ditadura militar, tanto das grandes obras de infraestrutura no Norte mas também Itaipu, Cumbica. Essa era uma hipótese inicial de que isso daria algum pano para manga, tanto pelo histórico dele quanto pela minha formação, que é uma formação de sociólogo e também um pouco de historiador, com a sociologia histórica. Estudei um pouco do período da ditadura e da democratização. Daria para fazer muitos livros diferentes tentando amarrar a história de um indivíduo com a história de um país. Essa foi a que consegui ou pude fazer para poder utilizar as histórias dele e também discutir uma literatura que me interessa, que é uma literatura crítica da modernidade, não só brasileira mas internacional, também, com esses autores que vou trazendo ao longo do livro.
Considerando tudo o que ele contou, você descobriu muita coisa nova? Tinha ideia do nível de dificuldade que ele havia enfrentando na rotina de caminhoneiro?
Eu já tinha uma boa ideia porque algumas dessas histórias foram aparecendo ao longo da nossa relação. Claro que conversas mais longas, tanto as entrevistas quanto... Como eu passei muito tempo do lado do meu pai em 2021, no tratamento... E quando eu digo muito tempo é noites juntos no hospital, horas esperando consultas, em um hospital público às vezes ficávamos sete horas esperando por uma consulta de 15 minutos. Nisso surgiam conversas, frases, histórias, uma relação muito íntima que foi se aprofundando nesse momento. Acho que eu pude ter uma visão mais detalhada desses desafios imensos. Por exemplo, ele fala muito de atoleiro. Todos nós sabemos o que é um atoleiro, mas não sabemos o que é passar cinco dias em um atoleiro. Aí tinha a solidariedade dos colegas, tirar a carga de um caminhão, amarrar os caminhões, puxar... Isso é uma aventura gigantesca. Um pouco mais desse detalhe, desse granulado do cotidiano, foi agora que consegui ter. Nunca vou ter completamente. Mas acho que consegui ver um pouco mais, imaginar um pouco mais o que seria esse dia a dia, demorar dois dias para atravessar 50 quilômetros, as balsas, os riscos de o caminhão virar.
Seu pai comparava o câncer a um jogo de cartas: “Eu tô jogando truco, mas não tenho mais carta na mão. Tô trucando no blefe. Por enquanto tô ganhando”. No final do livro, ele segue em tratamento. Você se questionava se ele estaria vivo quando o livro fosse publicado. O que aconteceu depois do ponto-final?
É muito curioso. Meu pai fez uma cirurgia do câncer em maio do ano passado. Qualquer cirurgia nele é muito delicada pela questão cardíaca. Eu já estava com uma versão quase final de tudo, menos as últimas quatro, cinco páginas. É só aí que falo do processo final do tratamento. Isso refletiu, de fato, o histórico do tratamento. Eu não tinha um final para o livro porque não sabia qual era o final do meu pai em relação àquele tratamento. Ele fez a cirurgia, ficou um mês aqui em São Paulo. Depois que ele se recupera, vai para Jaú, está ficando mais forte, aí escrevo as páginas finais do livro. Termino ali por agosto, setembro (de 2022). Já sabíamos que a cirurgia tinha sido um sucesso, estava tudo bem com o câncer. Escrevi as páginas finais. Obviamente, como a vida é cheia de aventuras, em dezembro ele volta a ficar supermal, não do câncer, mas do rim. Ficamos todos com muito medo. O livro já tinha sido entregue, estava quase sendo impresso. Felizmente, agora ele está em um momento bom, do rim, do coração. Ele está em um momento bom da vida, no limite do que dá para ele ser saudável. Ele faz tudo no dia a dia, dirige o carro, ajuda a minha mãe. Fiz um lançamento em Jaú, ele foi, foi uma festa. Estou contando para ele sobre a repercussão, ele fica superfeliz. Ele tem uma felicidade contida. Minha mãe, não. É superefusiva, conta para todo mundo. Ele é mais silencioso, mas sei que ele está feliz, muito feliz.
Ele começa a trabalhar em 1965, um ano depois do golpe militar, e está nas estradas durante o período do boom das obras da ditadura. Daria para fazer muitos livros diferentes tentando amarrar a história de um indivíduo com a história de um país. Essa foi a que consegui ou pude fazer.
Como foi o contato dele com o livro?
Li alguns trechos, minha mãe leu alguns trechos. Não sei se ele vai ler de cabo a rabo. Já pensei em gravar para ele ouvir. Não sabemos direito. Minha mãe já leu, devagarinho, fez fact-checking de várias partes: “Quem é esse Fulano? Quem é esse aqui?”. Meu irmão, que é editor de livros didáticos, já leu. É um momento muito rico.
E que presente deve ser para ele ter o livro em mãos, né?
Falo no livro sobre o quanto a minha profissão é abstrata para o meu pai. Começo falando disso. A vida de acadêmico, professor, escritor... Mas o livro é um objeto, concreto. Ele consegue pegá-lo na mão, mostrar para os amigos, para as irmãs. Isso é diferente. Acho que, pela primeira vez, ele tem algo material, “este aqui é o seu trabalho”. Está sendo muito bonito. Muito rico para mim e para ele.
Parece que um ciclo se fecha: o desejo de fazer o livro, escrevê-lo, lançá-lo, seu pai vendo o livro... E a história continua: chegou a hora de o livro ser lido, ganhar os leitores. Como você está vivendo este momento? O que É Meu está sendo muito bem recebido.
Está sendo uma fase de muita surpresa. Como acadêmico, se meia dúzia de pessoas leem o que você escreve, na maioria das vezes, você tem sorte. Essa foi uma das coisas que me incomodaram na escrita acadêmica, como professor. Com exceção de alguns livros que ganham repercussão, os artigos, em geral, ficam num universo muito pequeno de reações. E eu tenho a grande sorte, a grande felicidade de esse livro estar chegando às pessoas. Muita gente tem escrito compartilhando histórias pessoais a partir da minha história. Filhos de caminhoneiros, pessoas que enfrentaram questões de saúde muito severas na família, com os pais. Estou recebendo várias mensagens. Estou aprendendo muito com a recepção do livro, aprendendo sobre o livro, sobre outros possíveis livros. Claro, aí tem também a grande surpresa e alegria de o livro já ter sido comprado por 10 editoras, para publicação em mais de 10 países.
Serão desafiadores, para os tradutores, os trechos de fala do seu pai.
Dois tradutores já estão escrevendo bastante para mim, a holandesa e o italiano. Estamos trocando ideias. “Isso aqui eu não entendi muito bem” ou então “isso aqui, em holandês, podem ser duas coisas diferentes”. Gosto muito de linguagem, linguística, idiomas, e está sendo uma troca divertidíssima. Mais de um editor e mais de um tradutor disseram que o mais difícil é a fala do meu pai. Felizmente, não é problema meu (risos).
O livro tem muitas referências literárias. Que espaço a literatura ocupa na sua vida?
Central. Qualquer período da minha vida em que eu não consiga me dedicar à literatura é um período que me gera muita angústia. É um sinalizador de se estou bem ou não. Isso há muito tempo. Acho que os livros mudaram a minha vida. O encontro com as bibliotecas públicas em Jaú, tanto pela escola quanto a municipal, abriu um universo para mim. Me lembro perfeitamente da emoção de abrir um livro e ler deitado, desde os sete anos. O universo dos livros me fisgou muito cedo. Não tenho dúvida nenhuma de que foi um ponto de virada na minha vida, mesmo sem a gente ter livros em casa.