Por Julia Dantas
Escritora, autora de “Ela se Chama Rodolfo” (DBA, 2022)
Com qualidade narrativa surpreendente para um livro de estreia, Tinta Branca é impactante desde a primeira linha e não perde o ritmo até o final. “A cidade amarrou o haitiano ao poste em um domingo de festa” é a frase de abertura, escancarando de largada que o objetivo de Alexandre Alliatti não é criar um suspense que deságua em tragédia, mas partir da tragédia para indagar: o que fazemos agora?
Acompanhamos as reações de Zago, Ana e Giovanni aos desdobramentos do ataque brutal. O jovem haitiano precisa sair da cidade, para sua própria segurança, mas as acusações contra ele seguem reverberando. Ana é professora na escola, assim como Zago, e desperta o interesse romântico do protagonista. Giovanni é um pesquisador negro recém-chegado na comunidade, em busca de respostas para um trauma pessoal.
Embora o título se explique nas primeiras páginas, também serve como metáfora para o posicionamento ético do livro, que busca lembrar que os brancos não são o ser humano universal a partir do qual se criam outras “raças” e pelo qual se enxergam outras etnias. Os brancos são também fruto de uma cultura, e, enquanto não entendermos as implicações da branquitude, pouco adiantará uma pessoa branca se autodenominar antirracista.
Faz parte da cultura branca dar menos peso às maldades cometidas por outros brancos, acobertar outros brancos, demonstrar mais empatia a outros brancos, afastar-se de uma situação de injustiça contra um negro para não se incomodar com outro branco, para “não pegar mal”, não dar fiasco, não passar vergonha, pois é parte essencial da cultura branca cristã o medo paralisante de passar vergonha. Os conterrâneos de Zago estão perfeitamente inseridos nesta cultura, e é por tentar destoar desse entorno que o hesitante protagonista da história enfrentará perdas e punições.
É fácil para uma pessoa branca consciente se identificar com Zago. Ele tem bom coração, conversa com o imigrante negro da cidade (no limiar bem calculado entre condescendência e intimidade, um ponto de equilíbrio sutil, mas familiar a tantos de nós, brancos de bom coração), estabelece amizade com outro jovem negro forasteiro, leva os alunos da escola para uma aula transgressora debaixo de chuva; é fácil gostar dele, entender onde ele está.
Zago vive em Nova Colombo, uma cidade fictícia localizada na serra gaúcha que poderíamos facilmente confundir com inúmeras localidades de imigração europeia. É uma cidade com um povo que se orgulha dos feitos de seus antepassados, mas que faz questão de esquecer que, se é possível sentir orgulho pelos atos grandiosos de quem nos antecedeu, é também necessário sentir vergonha pelos erros desses mesmos antepassados. Querer ter uma coisa sem a outra é, na melhor das hipóteses, fantasia – na pior, falta de caráter. De nariz empinado para falar dos seus sobrenomes italianos, os moradores de Nova Colombo se escondem quando são questionados sobre um crime de uma semana atrás ou de 20 anos antes.
Embora haja momentos em que o protagonista deseja fugir das aflições no seu entorno, a mão firme do autor não permite que a obra siga o mesmo caminho: Alliatti nunca cai no escapismo e em momento algum evita a dura tensão dos conflitos raciais.
Tinta Branca é um romance que explora com inteligência os limites da paz social num país construído por pessoas negras escravizadas, que não se exime de temas espinhosos nem de caminhos sombrios. Se deixa algo por fazer, é não aprofundar mais as motivações da personagem Ana, que às vezes parece sofrer de um complexo de branco salvador, às vezes parece ser a única que se comporta com um mínimo de decência. Mas é bem possível que o mistério não resolvido de suas posturas se deva à dificuldade de as pessoas brancas antirracistas descobrirem onde elas devem agir e de onde devem se retirar.
O livro, como era de se esperar, não oferece respostas simples para os problemas complexos que aborda. Ainda assim, ele parece apontar para a ideia de que é nas relações interpessoais que as dinâmicas podem ser alteradas, que as dores podem ser apaziguadas; no âmbito social, o caminho é sangrento e deixa cicatrizes permanentes.
Aos brancos que chegaram aqui, só posso dizer: Tinta Branca é uma leitura incômoda e, por isso mesmo, com o potencial de ser transformadora. Basta ter a disposição de olhar para este espelho sem desviar os olhos.