Por Rodrigo Breunig
Jornalista e tradutor, autor de “A Última Noite das Bicicletas” (2021)
Nos anos 1980 da minha infância, sozinho em casa com meu irmão, eu tinha um pânico de que meus pais não voltariam vivos. Eles iam sofrer algum acidente. Eu tentava respirar: as coisas que acontecem são aquelas que a gente não prevê. Nos anos 1990 da minha adolescência, entre o Natal de 1989 e o Dia das Crianças do ano 2000, em quatro acidentes de carro, morreram minha vó Ingeborg, meu tio Paulo, minha prima Aline, meu tio Elguido e o meu melhor amigo, um guri constantemente sorridente chamado Gustavo.
No verão de 1990, passei a ter um sonho recorrente: vou caminhando na beira do mar com meus pais e meus irmãos; de repente, na distância, vejo minha vó Ingeborg e meu tio Paulo. Eu dizia no sonho: “Pai, são eles!”. “Não são eles”, meu pai dizia no sonho, “são só pessoas parecidas com eles”. Esse sonho me visitou até o inverno e nunca mais voltou.
Com o Gustavo eu sonho até hoje. Às vezes uma vez por mês. Às vezes uma vez por ano. Vou caminhando sozinho numa estrada, vejo meu amigo e digo: “Eu sabia que não era verdade”. Meu amigo conversa comigo. Na nossa adolescência, ele era o único à minha volta que adorava ler. No verão de 1992 ele sorriu e me perguntou: “Literatura, pra ti, é o quê?”. “Não sei”, eu disse, “é fazer o que os nossos autores favoritos fazem”. “Mas como fazer o que eles fazem?” “Não sei”, eu disse.
No outono de 2017, sem conseguir trabalho e prestes a ter uma filha, comentei com um amigo da vida adulta que eu estava tentando escrever um romance. Eu queria contar uma história da grande amizade entre um adolescente bastante deprimido que perdia pessoas queridas em desastres de carro e um adolescente absurdamente feliz da vida, constantemente sorridente.
Lá pelas tantas o guri deprimido diria: “Se eu puder contemplar o rosto do atropelador dos meus pais bem de perto, o anjo da morte não baterá na minha porta nunca mais”. O guri deprimido se chamaria Lucas (porque liguei a TV e o primeiro nome que ouvi foi Lucas). O guri sorridente se chamaria Pablo (porque liguei a TV de novo e o primeiro nome que ouvi foi Pablo). “Na tua situação”, disse o amigo da vida adulta, “tentar escrever um romance é a pior coisa que tu poderia fazer”. Ele tinha razão, claro. Mas foi a melhor pior coisa que eu já fiz.
Vinte anos depois da primavera em que o Gustavo se foi, na Primavera da Pandemia, peguei dinheiro emprestado e imprimi 500 exemplares do meu romance. Até a primavera seguinte, o livro alcançou algumas dezenas de pessoas. Um leitor desconhecido, tendo lido apenas a sinopse, me escreveu mais ou menos assim: “Estou em choque. Meu irmão morreu atropelado por um taxista. O taxista trabalhava no aeroporto, e por muitos anos, nas minhas viagens, tive que contemplar o rosto do atropelador do meu irmão”.
Contei a uma leitora desconhecida que o meu pai conhecia episódios da vida do pai dela. Ela respondeu: “Rodrigo, poderás estranhar que abro meu coração a um estranho, mas o comentário do teu pai me causou um sentimento indefinível, fiquei feliz e chorei muito, são tantos anos da partida do meu pai que parece que foi miragem... E a lembrança do teu pai me fez pensar: ele existiu mesmo e deixou memórias em mais alguém”.
Outra leitora desconhecida, tendo lido apenas um trecho inicial em que os guris pedalam por curvas perigosas, me escreveu: “Minha prima morreu ali. Ela e o namorado. O carro bateu nas árvores. Eu era criança e tinha sonhado, naquela noite, com um casal num acidente de carro. Isso me marcou tanto...”. Contei a ela que esse namorado era o meu melhor amigo.
Quando levei o livro para os pais do Gustavo, eles me contaram uma coisa que eu não sabia. Na noite do acidente, no hospital, eles foram procurados para dizer se autorizavam que o filho doasse as córneas. Dois meses depois, levaram o menino que recebeu uma das córneas à cerimônia em que o filho se formaria em Medicina. A mãe do Gustavo disse no palco: “Parte dele está aqui. Ele está vivo na visão desse menino”. O menino se chamava – se chama – Pablo.
Agora chegou mais uma primavera. A Primavera da Esperança. Aconteça o que acontecer (eu tento respirar: as coisas que acontecem são aquelas que a gente não prevê), nunca deixarão de nos amparar as pessoas sorridentes. Hoje, Gustavo, pra mim, literatura é abrir o coração a um estranho, é contemplar o rosto do atropelador no aeroporto, é sonhar com um casal que perde a vida nas árvores, é ver o mundo com os olhos do Pablo.