A morte de um inseto não deveria ter qualquer significado, ainda mais quando se trata de uma simples mosca, que só perde para a barata em matéria de repugnância entre os humanos. Mas, dependendo da circunstância, pode assumir papel de relevância.
Somente agora, neste inverno de 2022, descobri, transcorridas várias décadas, que eu e a escritora francesa Marguerite Duras – autora do roteiro do consagrado Hiroshima Mon Amour (1959), falecida em Paris em 1996 – passamos por experiência similar. Mas com diferenças: a personagem principal de ambas as histórias não foi a mesma, e os dois episódios estão 18 anos separados no tempo. O meu, como protagonista, aconteceu em 1955, o dela, como testemunha, em 1973, mas só foi relatado 20 anos depois no seu livro Escrever, cuja tradução saiu no Brasil no ano passado.
Em 1955, estudei um ano de Filosofia no Seminário Maior de Viamão (hoje, um núcleo de estudos da PUCRS). Naquela época, as aulas eram ministradas em latim, os livros, também no idioma de Cícero, vinham de Roma, editados pela histórica Pontifícia Universidade Gregoriana.
Numa manhã de novembro daquele ano, quando me preparava para a prova final de Lógica, subi sozinho a um terraço para revisar a matéria. Em dado momento, uma mosca distraída pousou sobre o livro aberto. Meu impulso, na hora, foi fechar o volume. Ao abri-lo com cuidado, lá estava a pobre vítima, esmagada e colada no papel. Assim a deixei. Confesso que meu desejo era apenas assustar e espantar o bicho. Foi, digamos, um assassinato doloso, sem intenção de matar.
Em seguida, com um lápis, fiz o devido registro ao lado do cadáver, em latim, por supuesto: “Mortua est. Misera musca, mane dies 27 november 1955. Requiescat in pace”. Passados 67 anos, ainda guardo o livro Logica Maior, do jesuíta italiano Franciscus Morandini. E, por incrível que pareça, dentro dele ainda continua o corpo do pequeno inseto, de asas abertas, desidratado e grudado no alto da página 63. Guardo esse volume, já com a capa solta e desgastado pelo tempo, com um cuidado todo especial. O motivo disso? Simples capricho de um colecionador de coisas antigas.
Já Marguerite Duras deu um tratamento bem mais elaborado ao seu caso, do qual não foi apenas testemunha, foi analista e parceira. Acompanhou detalhadamente a agonia e a morte do seu inseto. “Aproximei-me para vê-la morrer”, narra a escritora. “Fiquei observando como uma mosca morria. Foi demorado. Ela se debatia contra a morte. Durou talvez de dez a quinze minutos e então parou.”
Certa tarde, Marguerite estava em casa sozinha, nas proximidades de Paris, esperando a visita de uma amiga cineasta que preparava um documentário sobre a vida da escritora. De repente, percebe o movimento de uma mosca que se debatia presa ao cimento ainda úmido no reboco de uma parede em reforma. Passa então a acompanhar de perto da cena. Ao contar depois o episódio à amiga, esta cai na gargalhada, quando ouve que a mosca havia morrido exatamente às 15h20min daquela tarde. “Isso é coisa de louca”, teria dito.
A escritora dedica nada menos do que 10 páginas de seu livro ao assunto. Esse tipo de inseto, que nunca lhe despertara qualquer interesse, transforma-se em inspiração literária. Não qualquer mosca, mas esta em particular. “Sim. É isso, a morte daquela mosca se tornou esse deslocamento da literatura. Escrevemos sem saber. Escrevemos observando uma mosca morrer. Temos o direito de fazê-lo”, registra a autora. Mais adiante, acrescenta: “Em torno de nós, tudo escreve, é isso que precisamos perceber, tudo escreve, a mosca, ela, ela escreve, nas paredes, ela escreveu bastante na luz da grande sala, refletida pelo lago. A escrita da mosca poderia preencher uma página inteira”.
Marguerite Duras encerra sua narrativa com uma constatação e um ensinamento: “Vemos morrer um cachorro, vemos morrer um cavalo, e dizemos alguma coisa, por exemplo, pobre bicho... Mas, quando uma mosca morre, não dizemos nada, não nos damos conta de nada”.
Enquanto isso, a minha mosca vai continuar inerte, porém bem mais real que a da madame Duras, entre as páginas do livro de Lógica, como uma múmia preservada num sarcófago de papel.