Após a dificuldade para abrir a porta do apartamento recém-alugado, o protagonista de Ela se Chama Rodolfo (DBA Editora) vai deparar com uma tartaruga abandonada no local. Imediatamente, Murilo a coloca na água e a alimenta, mas já define que precisará livrar-se dela. Não demorará até que o pequeno réptil se torne o centro da jornada dele por meandros de uma Porto Alegre que ele mal conhecia, mas também o ponto de partida para alguns fracassos e algumas vitórias. Neste novo romance de Julia Dantas, escritora, editora e tradutora, a cidade calorenta do verão porto-alegrense é o pano de fundo, enquanto os relacionamentos, as vulnerabilidades e os anseios estão no plano central.
As relações mais importantes da obra, no entanto, serão as amizades, ainda que o personagem principal esteja em busca do isolamento devido ao abandono sentimental. Nesse sentido, a profissão de porteiro noturno lhe cai bem. Murilo é um homem jovem, aparentemente soturno, que terá na tartaruguinha uma quebra desta rotina. Por conta dela, Murilo passa a trocar e-mails com uma misteriosa mulher, que conta histórias de diversos lugares do mundo. O leitor, por vezes, poderá se perguntar se essa mulher — Francesca — realmente existe. A partir dela, também surgirão Camilo e a própria irmã do protagonista, Lídia, com quem não tem a melhor das relações.
— O foco do livro é a amizade, assunto menos trabalhado na literatura. Os grandes amores, as desilusões e as vinganças decorrentes do amor estão muito presentes nos livros. Já as amizades aparecem menos, ainda que as relações com os amigos sejam infinitamente mais duradouras do que os amores. É um amigo que vai te indicar o caminho ou apontar alguma obviedade que a gente não enxerga — ressalta Julia.
As amizades também serão transformadoras no pequeno cosmo de Murilo. Serão elas a demonstrar ao personagem — construído de forma que muitos leitores e leitoras identificarão um conhecido, um amigo ou um parente semelhante — a responsabilidade por seus atos e consequências. A construção desse personagem foi um desafio pessoal para a escritora:
— Além de abordar temas universais, como solidão, saudade e ressentimento, sentimentos que todo adulto sentiu alguma vez na vida, por motivos óbvios (o fato de a autora ser mulher) foi um desafio construir um personagem homem da geração dos 30 e poucos. Muitos têm dificuldades em assumir as consequências de suas próprias decisões, seja porque não se questionam, seja porque não falam sobre seus problemas e desilusões, algo que é muito mais natural para as mulheres.
A história também é sobre solidão e como escolhemos mergulhar nessa sensação ou decidimos sair dela para uma próxima etapa. Paralelamente ao tema, surgirá ainda a discussão sobre sexualidade e o nascer em um corpo "errado", segundo a descrição de uma importante personagem da obra. A transexualidade será importante também para transformar a vida e a vivência de Murilo. Ele vai entender que não basta fazer uma escolha.
Longe de ser bairrista, o segundo romance de Julia Dantas faz um passeio por diferentes lugares da cidade. Desde o bairro Partenon, Murilo parte para locais como a zona rural de Porto Alegre, entre sua tranquilidade e os famosos pêssegos maduros do verão, e o tumultuado e barulhento Centro. Nessas incursões, o herói (ou anti-herói, talvez) da história conhece pessoas diferentes e se obriga a buscar alguma conexão, ainda que breve, devido à existência de Rodolfo. A escritora define sua obra como uma espécie de "road história" — na falta de um adjetivo mais adequado e numa alusão ao que conhecemos como filme de estrada ou de viagem, o road movie do cinema.
Foi uma espécie de resgate da própria cidade, desconhecida também da autora, que voltava de um período morando na Argentina e no Peru, com passagens por Equador e Colômbia. Enquanto o personagem Murilo transita por Porto Alegre, a troca de mensagens com Francesca o leva a viagens pela América Latina e seu folclore.
Esse é o ponto de ligação com o livro anterior, Ruína y Leveza (2015), primeiro romance da escritora, que narra a trajetória de uma mulher que decide viajar ao local mais longe que suas reservas financeiras podem pagar. Nessa história, a protagonista deseja partir da vida que não descarta de todo num futuro, mas que não tem nenhuma pressa em manter no presente. O fator catalisador é o fim de um relacionamento e a chegada inesperada do desemprego. O leitor é levado a uma imersão pela América Latina, semelhante ao que a autora fez durante três anos.
Mas essa é apenas uma referência, as histórias não se conectam, nem se repetem. A protagonista do primeiro romance busca se libertar, enquanto Murilo parece se esconder dentro de um casco, assim como faz a tartaruguinha quando ameaçada. Até que tudo começa a mudar, inclusive a carapuça.