Jorge Barcellos (*)
Em A Vertigem das Listas, Umberto Eco afirma que as listas mudaram ao longo do tempo e expressaram o espírito de sua época. A publicação de Dicionário dos Antis: a Cultura Brasileira em Negativo (editora Pontes, 858 páginas, R$ 160), por um lado, mostra que vivemos uma época que pode ser resumida por um notável prefixo anti, o que significa que somos, acima de tudo, uma cultura do contra; por outro lado, vivemos num pais no qual, ao longo dos últimos anos, emergem todas as correntes e discursos centrados na percepção negativa do Outro — antissemitismo, anticlericalismo, anticomunismo etc. — e sobre o qual se constituem as identidades no Brasil.
Reunindo artigos de 131 pesquisadores em 133 verbetes que descrevem o processo de demonização das diferenças, a obra é uma história da cultura brasileira em negativo. Produto da parceria de caráter internacional entre o Núcleo de Estudos de Cultura da Universidade Federal de Sergipe e o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, com o apoio de mais 13 instituições nacionais e internacionais, a obra dirigida pelos pesquisadores Luiz Eduardo Oliveira e José Eduardo Franco tem a versão brasileira organizada por Carmela Grüne, Cristiane Nunes, Jean Chauvin, José dos Santos e Sandro Marengo, reunindo famosos pesquisadores brasileiros, como Luis Mott, Maria Luiza Tucci Carneiro e Valdete Souto Severo, e outros nem tão conhecidos — como o resenhista que vos fala, que colabora com o artigo Antibolsonarismo. É uma obra top de linha.
O livro reproduz no Brasil o que o Dicionário dos Antis: a Cultura Portuguesa em Negativo foi em Lisboa. A ideia surgiu ao escritor português José Eduardo Franco em 2004, quando estava concluindo seu doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Lá, estudou os discursos anti, como o antijesuitismo, o antissemitismo, o anticastelhanismo, o anti-islamismo, o antimaçonismo, o antiprotestantismo e o anticomunismo, e começou a redigir o dicionário português em 2011, lançando-o em 2018. No ano seguinte, partiu para construir o dicionário brasileiro, processo que foi impactado pela pandemia em 2020.
Talvez por essa razão, a versão brasileira saiu menor do que a portuguesa: suas 858 páginas representam menos do que a metade da versão além-mar, com suas 2.314 páginas divididas em dois volumes. Ainda assim, no entanto, é uma edição de fôlego.
Escreve José Eduardo Franco: “Fomos habituados, na escola, a aprender fundamentalmente aquilo a que podemos chamar a cultura positiva, a visão afirmativa da história. Este dicionário, em contrapartida, propõe uma visão diametralmente oposta: uma viagem pelas correntes, etnias, religiões e instituições, as figuras a partir do olhar do adversário, de quem discordou, de quem atacou, de quem pensou o contrário”.
O cenário que os autores encontram no Brasil é inquietante. Os artigos reunidos revelam que o negativo também faz parte de nossa natureza, que percebemos o Outro de forma reduzida e, com isso, criamos os estereótipos e demonizamos as diferenças.
É curioso que a ideia de ser “do contra” seja tão presente tanto no Brasil quanto em Portugal. Seria a intolerância, a segregação e a capacidade de ser sectário também uma herança de nossa formação?
Os organizadores afirmam que o negativo “é um elemento constitutivo do processo de construção de identidades, quando não parte integrante das mesmas”. A obra instaura um discurso crítico do conhecimento do Outro, recusando as visões simplificadoras e empobrecedoras. A realidade é complexa, rica e diversa. As fake news, nesse sentido, seriam apenas mais um recurso propagandístico a serviço da deturpação da verdade, e, nesse sentido, antijornalismo.
Há os anti no campo social (antifeminismo, anti-humanismo), no econômico (anticapitalismo, anticomunismo), no ideológico (antiantropocentrismo, anticolonialismo), no artístico (antiarquitetura, anticlassicismo), mas é no campo político que a contribuição da obra à cultura brasileira é mais forte: de anticorrupção à antilavajatismo, passando por antipetismo e antibolsonarismo, é a crônica anunciada de uma cultura em desagregação. Seu ponto de partida é o nosso ponto de chegada, o de que vivemos a época do êxtase dos discursos e práticas que antagonizam os Outros, produto de um mundo dividido que usa de diversas estratégias, seja em termos de estilo de vida, crenças ou ideologia. Nesses discursos, o Outro é visto como uma ameaça aos valores do grupo que o pronuncia e aquele que o profere se apresenta como “novo” porque reduz o diferente ao “velho”, síntese de nossas práticas da qual os brasileiros não se orgulhariam ao olhar no espelho.
(*) Doutor em Educação (UFRGS)