Não é fácil escrever um livro best-seller, que dirá dezenas deles — mas transformar o sobrenatural em realidade é, de certa forma, a especialidade de Stephen King. Aos 73 anos, o senhorzinho do Maine, nos Estados Unidos, tem seu 62º romance lançado no Brasil nesta sexta-feira (19): trata-se de Depois (Editora Suma, 192 páginas, tradução de Regiane Winarski).
A nova trama pode remeter ao filme O Sexto Sentido (1999), ao colocar como protagonista um garoto com a habilidade sobrenatural de falar com pessoas mortas. Jamie Conklin até tenta levar uma infância comum, a pedido de sua mãe, mas tudo muda quando uma detetive do Departamento de Polícia de Nova York precisa de sua ajuda para descobrir os segredos de um terrorista morto. A partir daí, uma jornada aterradora se inicia para o menino.
O livro entra para uma bibliografia inacreditavelmente bem-sucedida, que inclui desde
O Iluminado até It: A Coisa, passando por Carrie, A Zona Morta, A Dança da Morte, Louca Obsessão, A Torre Negra, O Cemitério, entre muitos outros. São obras que, mesmo que não tivessem vendido centenas de milhões de cópias, entrariam para a história por seu impacto na cultura pop pelos últimos 45 anos.
— Sem dúvida a obra do King é imagética pra caramba, e mesmo quem nunca leu um livro dele está familiarizado com uma história ou outra por causa das adaptações — reflete a editora Beatriz D'Oliveira, da Suma, responsável pelo lançamento de Depois.
Este potencial imagético não cessa de atrair cineastas desde que Brian De Palma apresentou ao mundo Carrie, em 1976, seguido por Stanley Kubrick com O Iluminado, em 1980. Ainda hoje, o cinema se rejubila com figuras como Pennywise, o palhaço macabro de It: A Coisa (2017), sem contar a atual corrida dos serviços de streaming por adaptações de King — a Netflix acaba de anunciar mais uma.
Tal sinergia entre as páginas e as telas pode ser vista como parte do segredo do autor para o sucesso. Como narra Edilton Nunes, responsável pelo portal nacional Stephen King Brasil, foi a onipresença dessas adaptações de obras do escritor que o levou a procurar os livros:
— Eu conheci King há exatos 26 anos, em 1995, quando assisti a uma minissérie chamada Fenda no Tempo (The Langoliers, no original), baseada em um dos contos do livro Depois da Meia-Noite. Desde então passei a notar que em muitos dos filmes que eu gostava aparecia a chamada: “Baseado em uma obra de Stephen King”, e foi então que eu decidi procurar saber quem era esse tal Stephen King.
As dezenas de produções inspiradas nos livros e contos de King ajudam a explicar o sucesso do autor nas últimas décadas. E não para por aí, já que a convergência midiática garante que este processo seja cada vez mais reforçado, como explica a doutora em Letras Adriana Falqueto, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas e coordenadora do grupo de pesquisa Literatura, Ficção e suas Materialidades:
— A literatura é porta de entrada para as séries e os cinemas, assim como o oposto pode ser observado. Séries como a superpopular Stranger Things são porta de entrada para filmes clássicos da década de 1980, ao passo que estes sinalizam para obras de King, como O Cemitério Maldito, Na Hora da Zona Morta, Christine e O Iluminado. O lançamento do filme Doutor Sono (2019) certamente fez com que as vendas tanto do livro homônimo quanto do antecessor, O Iluminado, se ampliassem.
Não é só horror
Seria injusto, no entanto, creditar todo o sucesso de King às adaptações bem-sucedidas. Seus livros, afinal, são tão reverenciados quanto os filmes e séries que vieram depois: entre inúmeras honrarias, o autor foi condecorado nos EUA com a Medalha da Fundação Nacional do Livro de 2003, por Contribuição Distinta às Letras Americanas, e com a Medalha Nacional de Artes em 2014.
Qual a fórmula para o sucesso? Para o escritor gaúcho Duda Falcão, um dos idealizadores da Odisseia de Literatura Fantástica e autor do "weird western" O Estranho Oeste de Kane Blackmoon, a versatilidade é uma das armas secretas de King:
— O horror em suas histórias nem sempre é o prato principal, pode aparecer muitas vezes apenas como um tempero, um ingrediente difícil de digerir. King escreve horror sobrenatural, horror psicológico, ficção científica, aventura, fantasia, drama, literatura policial etc.
Os leitores estão de acordo. Edilton, por exemplo, afirma que é até injusto considerar King "O Rei do Terror", uma vez que ele entrega muito mais do que isso em seus livros:
— O terror, em suas obras, é apenas uma ferramenta para que ele possa explorar os medos, os anseios, as dúvidas e os segredos de seus personagens, e eu acredito que é isso que o diferencia da maioria dos outros autores e enriquece tanto seus livros. King é um observador e conhecedor atento das múltiplas faces da humanidade.
Por isso, ele argumenta, é possível ligar os livros sobrenaturais de King a problemas completamente mundanos: o preconceito social e bullying em Carrie, os perigos do álcool em O Iluminado, as loucuras da paixão adolescente em Christine.
— É justamente isso que eu mais gosto nas histórias dele. Os livros do King são sobre pessoas comuns em situações extraordinárias e como elas lidam com isso — conclui Edilton.
Mas também é o horror
Dito tudo isso, é preciso ressaltar que King é sim um autor cânone do horror e faz parte de um movimento maior que explora os medos e angústias humanas na literatura.
Como Duda Falcão lembra, muito antes do criador de Carrie sequer nascer, Edgar Allan Poe investia no estranho e no macabro em pleno século 19. H.P. Lovecraft, na primeira metade do século seguinte, dava início ao que ficaria conhecido como o horror cósmico.
— Com a estrada pavimentada, Stephen King olhando pelo retrovisor, pôde reconhecer esses gêneros, entre tantos outros que explorou, e seguir sua viagem no caminho das narrativas de horror — destaca o escritor.
E por que, através dos séculos, essas histórias seguem ressonando com os leitores? Dos livros aos filmes, passando por lendas, mitos e folclores? A professora Adriana explica que a resposta está na própria natureza humana e na experiência da humanidade:
— Nós nos sentamos ao redor de fogueiras para contar histórias assustadoras desde o início dos tempos. É uma mistura de curiosidade e fascínio que faz parte da nossa experiência. De acordo com Lovecraft, o gênero existe desde a idade da pedra. O que muda ao longo do tempo, de Allan Poe a King, é "o monstro". A forma de narrar não se adaptou tanto às audiências quanto os horrores, estes, sim, vão evoluindo e se adequando às necessidades de quem lê.