Em meio ao mar de problemas e incertezas trazidos pela covid-19, ao menos um efeito colateral positivo pode ser registrado: sobra aquele tempo que você dedicava a se deslocar até o trabalho. Nada melhor do que preencher esse espaço devorando livros... ou escrevendo-os. Foi durante os meses de clausura impostos pela pandemia que o sociólogo gaúcho José Vicente Tavares dos Santos concluiu uma obra fascinante: O Romance da Violência (Sociologia das Metamorfoses do Romance Policial).
A obra é resultado de mais de quatro décadas de leituras vorazes e pesquisas por parte de um dos mais conhecidos e laureados cientistas sociais do Brasil. O livro faz uma abordagem histórica e sociológica do melhor que a literatura policial produziu. Quase tudo é ficção, mas há também espaço para narrativas reais de crimes.
Interessante notar, ao longo da obra, como conceitos de crime vão mudando e modismos do submundo, caindo. Crime, na sociologia clássica, é tudo que fere a consciência coletiva. O curioso é como essas feridas se transformam e cicatrizam ao longo das décadas. Dois exemplos singelos: furto (bater carteira) era capa de jornal décadas atrás; hoje não leva mais ninguém para a cadeia no Brasil. Assassinato para vingar a honra, que já foi tolerado pelo júri, agora é condenação sumária.
O leitor pode conferir essa mutação nas 192 páginas de O Romance da Violência. O autor, Zé Vicente, como é conhecido entre seus pares, mescla arguta observação sobre clássicos literários e sua própria análise sociológica. A matéria-prima é a violência, o discurso da recusa, a negação do outro como ator social e suas trágicas consequências. A preponderância, nessa obra, é de crimes de sangue e não contra o patrimônio.
Zé Vicente sabe do que fala. Coordena e participa de grupos de estudos de violência mundo afora. Professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem doutorado e pós-doutorado centrados em questões de violência e cidadania. O livro é resultado de um projeto de pesquisa intitulado “Conflitualidades: violências, representações sociais e segurança cidadã na América Latina”, desenvolvido em um processo que incluiu seminários com alunos de pós-graduação.
É com propriedade, portanto, que Zé Vicente compara estilos e narrativas de romances policiais em diferentes países da América Latina. Locais que ele conhece de perto. E analisa como essas obras descrevem os subterrâneos criminais dessas nações. Desfilam pelas páginas do livro autores multipremiados, como o mexicano Carlos Fuentes, o colombiano Gabriel García Márquez e os brasileiros Rubem Fonseca (esse, um ex-policial) e Luiz Alfredo Garcia-Roza, ao lado de gente menos conhecida, mas igualmente talentosa. É o caso da colombiana Laura Restrepo, cujas heroínas misturam narcotráfico, empoderamento feminino e vingança. E do mexicano Elmer Mendoza, autor de várias obras que mesclam pistolagem, polícia corrupta, tráfico de influência, guerra ideológica e empresários temerosos de sequestro – um resumo do México moderno.
García Márquez surge como um contraponto no universo de obras ficcionais analisadas por Zé Vicente. O Nobel colombiano é tema de um capítulo sobre seu livro Notícias de um Sequestro (1996), que trata de realidade nua e crua: a onda de assassinatos políticos e captura de reféns ordenada pelo narcotraficante Pablo Escobar como represália contra as perseguições que sofria dos governos, na virada dos anos 1980 para os 1990. Márquez conheceu pessoalmente alguns dos notáveis sequestrados, o que torna mais verossímil e dramática sua narrativa.
Muito provavelmente para facilitar a compreensão do leitor, a abordagem do livro também é cronológica. Começa no século 19, com o romance de enigma praticado por Edgar Allan Poe e Conan Doyle. Passa pela Era dos Gângsteres glamorizada por Hollywood. Pelo romance noir (repleto de perfídias, falsos moralismos e pecados) de Dashiell Hammet e Raymond Chandler. E desemboca nos latino-americanos contemporâneos, com a realidade dos cartéis e da corrupção avassaladora, sempre regada a sangue – de culpados e inocentes.
Em tempos de indecisão quanto a presentes de Natal, de horas vagas e verão chegando, fica a dica de leitura profunda e prazerosa.
Trecho da obra
“Dois grandes poderes empreendem uma luta para controlar o México. Neste caso, o poder econômico personificado por Adán Gorozpe enfrenta o poder policial representado por Adán Góngora. E o faz jogando as mesmas cartas: delinquência, terror e morte. Para salvar seu relacionamento, seu casamento, sua vida e a alma de seu país, Adán Gorozpe pode ter que invocar a ira dos anjos para expulsar todas essas serpentes do seu Éden mexicano.
A esposa de Adán, Priscilla, se apaixona pelo impetuoso diretor de segurança nacional, Adán Góngora. Este, por seu lado, usa a violência contra as vítimas para esconder o fato de que está deixando narcotraficantes e assassinos em liberdade. Há somente duas forças que se impõe: a violência e a morte”.