Por Natalia Borges Polesso
Escritora e tradutora, doutora em Teoria da Literatura (PUCRS), pós-doutoranda na UCS
Eu me sinto tão contemplada ao ler a poesia de Angélica Freitas, e isso não é nada banal. Quantas metáforas de estar no mundo não tivemos (e temos) que torcer? Ou melhor, quantas vezes não tivemos (e temos) que nos torcer para caber nas imagens de estar no mundo? De sua compreensão e entendimento? E ainda assim, a literatura, esse monumento assombroso, nos trouxe até aqui para amar com elaboração.
Nesse laranjal sem laranjeiras, lendo/ouvindo as Canções de Atormentar, da Angélica, sinto que a poesia me acolhe e que nós podemos sorrir. Ainda que por vezes tentemos com nossas mãos – supostamente delicadas para algumas tarefas e desastradas para outras – amparar uma traíra, o fazemos com um sentimento de conquista, porque a paisagem afetiva nos contempla. Desculpem se pluralizo, mas não é possível que eu esteja aqui sozinha. Sinto que somos também essas sereias sem rabo de peixe, que com os pés na areia cantam canções de atormentar. Marinheiros, entupam seus ouvidos de cera ou cantem junto:
quem não pode ser marinheiro
por força das circunstâncias
quem não pode viajar o mundo
dentro de embarcações
deve imediatamente
contemplar a ideia
de virar sereia
Há tempo esperávamos pelo novo volume de poemas da Angélica Freitas, que viria após o ilustríssimo Um Útero É do Tamanho de um Punho, onde couberam cadeiras e igrejas, muitas discussões, nossa indignação e nosso encontro com a poesia. A partir do Um Útero, criei o hábito de escrever cartas para Angélica, mas nunca as enviei, ela nem sabe. É que o Um Útero estabeleceu tanta possibilidade de diálogo, tantas vontades e perspectivas de escrita. Assim como Ana C. salvou Angélica de ser técnica em eletrônica ao 16 (e tá tudo bem ser técnica em eletrônica, se este for o chamado), Angélica tem salvado um montão de gurias de serem ridículas menestréis, papagaias da tradição, porque, em suas geografias, habitamos com mais conforto e
que bom
não querer nada
ficar sentada no café
e não querer outro café
nem mesmo água
(...)
só ficar parada
no paradeiro
muito quieta
derrubando com as pálpebras
o sistema
Meio punk até. Angélica inventou esse outro estar pra gente, nas brechas do cotidiano. Como um relógio na hora mágica, como cidades da memória ou como se ao encarar uma estante, reconhecêssemos os nomes, próximos ou distantes. Nessas cidades e passeios, cafés e mercados, são sempre as nossas bocas a ecoar pretextos:
escrever
escrever
escrever o quê, com a cabeça cheia de cenouras
de ceroulas de senhoras de cebolas de centímetros
de drummond
Pudemos ler alguns poemas deste novo volume em revistas, postagens no Instagram ou mesmo assisti-los em performances, como canções. Nesse hiato, foi possível acompanhar Angélica, por veredas e por avenidas. Vitor Ramil que o diga (conhecem Avenida Angélica?). Parece que falo em códigos, e falo mesmo. Essa língua é nossa. É que este livro é um acontecimento. Angélica é uma força. Se
tropeço é um vocábulo que contém o movimento
de quem se projeta ao solo por si mesma,
então Angélica é um vocábulo que contém o movimento de quem se projeta no mundo por si mesma, inventando corpo e voz. Quando leio seus poemas, palavra que sinto os pés sobre a língua. E esse sentir é um aprendizado tão terno.
Mas para que todos compartilhem desse dialeto e para que possam saber o que vão encontrar neste livro, alerto que Angélica é irônica no retrato dos Brasis quando diz, por exemplo,
“o meu país era uma pamonha
que um alienígena esfomeado
pôs no micro-ondas.”
queime-se.
é um epitáfio possível
e que é atenta quando fala das cidades, das famílias, de política, das instituições, do que é atrito e, portanto, contemporâneo,
não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia vai pra cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos
digo que presta reverência às suas referências e que colhe suas palavras com sabedoria e bem-querença,
quantas vezes pode
uma mulher deixar
a casa
e o trabalho virar corpo
e o corpo virar casa
e entender que volta
não existe
e, se ainda não estiverem convencidos e convencidas, não que isso seja necessário, mas afinal, isto é uma resenha,
a poetisa é legal
o que ela escreve não faz mal
a poetisa tem um blog
onde ela posta canções de rock
(...)
uma poetisa by any other name?
é poetisa o que você quer
Leiam estas canções de atormenter, essas chanson de atmosfera, calções de experimentar. Mas não esperem uma adaga no olho do pássaro louco. Ih qui birriqui. Siquirri!