O tradutor e professor da Universidade Federal do Paraná Caetano Galindo não é estranho a grandes empreitadas. Ele verteu para o português calhamaços de rematada dificuldade como Ulysses, de James Joyce, e Graça Infinita, de David Foster Wallace.
Agora, ele encara um clássico de facilidade enganosa: O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger (1919-2010), obra referencial que, desde 1965, só havia tido uma única e muito bem recebida tradução no Brasil, de autoria de Jorio Dauster, Álvaro Alencar e Antônio Rocha. Ele fala sobre o desafio e a perenidade do romance, que está ganhando nova edição pela Todavia.
Que desafios que um tradutor enfrenta ao encarar uma nova versão de uma tradução que teve tanto impacto até hoje?
Retraduzir é sempre complicado. Retraduzir essa tradução que tem o peso de um clássico é um bônus de complicação. Nossa principal preocupação foi sempre saber que não estávamos corrigindo nem revendo a tradução original, e sim propondo um novo trabalho, que, em certo sentido, começa do zero, porque é uma nova tradução feita a partir do original. Eu não consultei a tradução antiga, e em outro momento eu fui olhar o que eles fizeram depois das minhas decisões, mais por curiosidade. Óbvio que, como leitor, o trabalho já estava no meu inconsciente. Mas na hora de fazer o trabalho, éramos apenas eu e o original. E isso, eu tive essa conversa com o Jorio Dauster no dia do lançamento, é a maior mostra de respeito que se pode dar.
O que o senhor pensa ter feito de diferente da versão anterior?
A preocupação foi a de oferecer a melhor versão para o leitor de hoje, um texto que não soasse um pastiche do português dos anos 1950, o que ficaria bizarro pela própria sociolinguística do português e a história da cultura brasileira. O falante brasileiro médio de hoje tem muito menos contato com a língua portuguesa dos anos 1940 e 1950 do que o falante de inglês tem com o inglês daquela época e, portanto, ela tende a soar meio caricatural. Ao mesmo tempo, não queríamos que o Holden soasse como um adolescente de hoje, o que seria anacrônico. É sempre um fio da navalha tentar encontrar esse texto que tenha uma aura de passado sem ofender as suscetibilidades dos leitores de hoje. Teria sido essa a preocupação também dos tradutores daquela primeira versão. Mas traduções, sabemos hoje, tendem a envelhecer mais rápido do que os originais, até porque são pautadas pelas necessidades do mercado e do público leitor, e essas necessidades mudam mais rápido. O Apanhador está lá, de pé, firme, jovem e vigoroso. Já as traduções vão continuar sendo refeitas de tempos em tempos.
O que fez O Apanhador... perdurar?
O livro é um mecanismo encantador e perfeito. Ele sobrevive como engenho literário bem acabado. Tem um narrador em primeira pessoa encantador, algo que o Salinger sabia fazer muito bem. Tem uma estrutura interna bem cuidada, cheia de especularidades, simetrias, correspondências. O livro dá essa impressão de ser um fluxo livre, de oralidade contínua, mas é muito bem pensado. As referências se ampliam ao ecoar umas as outras. É um livro extremamente bem acabado e poderoso sobre temas muito profundos. Seja a entrada na adolescência, seja a superação do trauma da guerra, seja a ideia da morte, a perda de um familiar, a fragilidade da irmã diante do irmão mais velho, que talvez seja o grande tema do livro... Ele sobrevive pelo mesmo motivo que sobrevivem todos os clássicos: um conteúdo muito importante tratado de maneira muito profunda.
Holden é um rebelde contra o mundo adulto, mas dos anos 1950 para cá, criou-se toda uma cultura de valorização da juventude. Isso muda o impacto da obra para o leitor jovem?
Não sei se posso falar do impacto na juventude porque tenho 45 anos. Mas não acho que seja um livro adolescente. É um livro sobre um adolescente, mas mantém o impacto e o alcance para todo tipo de leitor. Tenho a impressão de que um adolescente de hoje ao ler aquele livro vai encontrar muita coisa que vai obrigá-lo a pensar. Mas é claro que os hábitos e a cultura eram diferentes. O Holden é revoltado contra coisas que parecem privilégios, parecem luxos para a maioria dos adolescentes brasileiros de hoje. Há contrastes muito grandes. Como sempre, isso é parte importante da grande literatura: não espelhar a tua realidade imediata, mas propor uma diferença, te colocar diante de um outro que, no entanto, compartilha contigo coisas muito centrais. Acho que isso vai acontecer também. A centralização da adolescência no imaginário cultural geral no cenário pós-rock'n'roll certamente terá modificado essa relação, mas não sei em que medida isso deve afetar o futuro e o presente da obra.
O livro tem a cadência de um texto que poderia ser lido muito bem em voz alta. Que ritmo o senhor buscava nessa tradução?
O ritmo da tradução é o ritmo da oralidade real, que é o Santo Graal da tradução literária, ao menos para mim: produzir uma voz oral convincente que não seja um pastiche, uma imitação de segunda ordem, que não seja falsa, fajuta, como Holden diria. Aquela coisa estranha que é produzir um texto literário para ser lido em voz baixa, no papel, que não ofenda, portanto, essas convenções, mas que, ao mesmo tempo, quando vocalizado, funcione bem. O livro é, fundamentalmente, você ao lado da voz matraqueante e permanente do Holden, e se essa voz não se sustentar, o livro não se sustenta. Foi essa a minha grande felicidade quando, no lançamento, em São Paulo, o Pedro Bial leu um trecho em voz alta e funcionou. Tive aquela sensação de que aquele texto estava vivo. É meio brega, mas preciso dizer que a Marcia Coppolla, a preparadora, que me ajudou 193% durante a elaboração do texto final, estava do meu lado e, quando o Bial começou a ler, a gente só trocou um olharzinho de alívio. O livro está de pé, a voz do Holden vai continuar falando para leitores de uma nova geração.
O Apanhador no Campo de Centeio
De J.D. Salinger
Romance. Tradução de Caetano W. Galindo. Todavia, 256 páginas, R$ 59,90