Além de unir brasileiros e argentinos fisicamente, por meio de uma ponte com Paso de los Libres, Uruguaiana tem ultimamente também aproximado os povos vizinhos por meio da literatura. Localizada a mais de 600 quilômetros da Capital, a cidade é ponto de partida de projetos editoriais que traduzem e ampliam a circulação de textos clássicos do Rio Grande do Sul e da Argentina.
O primeiro resultado dessas trocas literárias já está nas livrarias. Trata-se de uma edição bilíngue do épico Martín Fierro, de José Hernández (1834-1886), com nova tradução, lançada pela editora Movimento. Expressão máxima da literatura gauchesca, Martín Fierro consolidou o mito do gaucho na Argentina, homem campeiro que vaga pela amplidão do pampa, às vezes à margem da lei, mas com valores éticos próprios e profundo conhecimento da natureza. Atravessando fronteiras, os gauchos ficaram conhecidos do lado brasileiro como gaúchos, denominação que veio a se tornar o gentílico do Rio Grande do Sul.
Colmar Duarte, tradutor da nova edição da obra de Hernández, conhece bem esse modo de vida. Nascido em Uruguaiana, é descendente dos primeiros sesmeiros da região e conviveu desde a infância com argentinos e uruguaios nas terras que mais tarde herdaria dos pais, na comunidade Touro Passo.
– Fui guri de campo, de montar a cavalo e correr carreira. O capataz da estância onde me criei era uruguaio. Tinha um conhecimento impressionante da natureza. A gente andava a cavalo e entrava a pé nos matos. Ele me mostrava as marcas dos animais nas árvores e dizia coisas como: “Tá ouvindo o sabiá cantando? É sinal de que tem pitanga madura” – lembra Colmar.
Além de ter conhecimento da lida campeira, Colmar, de 87 anos, tem proximidade com o mundo das letras como romancista, organizador de coletâneas e compositor – foi o idealizador da Califórnia da Canção Nativa, festival que mudou os rumos da música regional gaúcha a partir de 1971.
– Já existem traduções de Martín Fierro para o português, embora muitas delas tenham se esgotado. A Movimento achou importante encaminhar uma nova tradução, pois esse é um livro fundamental não só para a Argentina, mas para toda a América do Sul. Foi muito bom contar com o Colmar, porque ele tem o ouvido de fronteiriço, de quem cresceu imerso nessa cultura e nessa linguagem – avalia o editor Carlos Jorge Appel.
O trabalho do tradutor inspirou mais um escritor de Uruguaiana a estrear no ofício. É o caso de Ricardo Duarte, irmão de Colmar, que também tem livros de ficção e ensaios publicados. Caçula da família, 12 anos mais jovem que Colmar, Ricardo deve lançar nos próximos meses uma edição de Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), livro fundador da literatura argentina, publicado em 1845.
O volume será viabilizado por uma parceria entre as editoras Movimento, de Porto Alegre, e Viapampa, de Uruguaiana, liderada por Nilza Izabel Mazetti Dornelles, esposa de Ricardo.
O tradutor e a editora já estão preparando mais um passo conjunto: o lançamento de Contos Gauchescos e Lendas do Sul vertido na íntegra para o espanhol.
O livro, previsto para o primeiro semestre de 2020, deve ser lançado na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, realizado pela Viapampa em parceria com a Yayetopa, fundação que une argentinos e brasileiros em prol da integração cultural das duas nações. Há apenas uma tradução integral dessas obras de Simões Lopes Neto para o espanhol, lançada por uma editora uruguaia em dois volumes.
– Na Fronteira, a integração é tão óbvia que parece desnecessário falar dela. Sempre convivemos, os de origens brasileira e argentina. No entanto, é preciso difundir e fortalecer esse diálogo para além da nossa área – conclui Ricardo.