A prefeitura de Porto Alegre emitiu um boleto cobrando antecipadamente a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) pelo uso da Praça da Alfândega para a realização da Feira do Livro deste ano. O documento cobra da CRL o valor de R$ 179.849,60, a serem pagos até 28 de setembro. De acordo com o presidente da Câmara, Isatir Bottin Filho, é a primeira vez que a prefeitura de Porto Alegre cobra da entidade pelo uso da praça, onde o evento é realizado desde 1955.
A Câmara também foi pega de surpresa pelo recebimento do boleto.
– Entramos, na semana passada, com a solicitação para usar a Praça da Alfândega, como sempre fazemos, todos os anos, e fomos surpreendidos diretamente com esse boleto – comentou Bottin Filho.
A cobrança foi decidida pelo Escritório de Eventos, vinculado à Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico (SMDE) e que se tornou, neste ano, o órgão responsável na administração de Nelson Marchezan pelas autorizações de uso do espaço público municipal. A justificativa do escritório é a aplicação do decreto municipal 17.986, em vigor desde 24 de setembro de 2012. O texto diz, no artigo 22, que "a atividade em Parques Urbanos e Praças que pretenda veicular qualquer tipo de publicidade ou promoção deverá ser autorizada pelo órgão ambiental, mediante compensação", além de apresentar fórmulas para o valor.
De acordo com o boleto recebido pela Câmara do Livro, a cobrança se refere ao uso da Praça da Alfândega por 67 dias – contando, assim, o período estimado de montagem e desmontagem das estruturas, das bancas e da cobertura, já que a feira propriamente dita está marcada para ocorrer entre 1º e 19 de novembro. O valor deve ser destinado ao Fundo Pró-Defesa Municipal do Meio Ambiente, discriminado na guia de pagamento.
Segundo Bottin Filho, o fato de a cobrança ter sido emitida agora que a Feira já teve valores aprovados para captação pela Rouanet e pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC) torna difícil o pagamento, já que ele não foi previsto nos projetos de financiamento.
– Estamos tentando marcar uma audiência com o prefeito para discutir essa questão. Não tínhamos ideia desde montante. Uma vez que a Feira não tem fins arrecadatórios, todos os eventos que realizamos nela são gratuitos – diz o presidente da Câmara do Livro.
Prefeito diz que emissão foi um erro
A repercussão do caso na imprensa e nas redes sociais, onde várias personalidades e entidades ligadas à cadeia do livro emitiram declarações criticando a medida, fez a prefeitura, após uma reunião realizada na tarde de ontem, emitir uma nota contemporizadora, alegando que a emissão do boleto foi realizada precipitadamente e que a Câmara ainda seria chamada a discutir com a prefeitura.
O secretário da Cultura, Luciano Alabarse, disse que o processo não passou pela secretaria dele. Que tudo foi feito via Escritório de Eventos:
– Estamos procurando uma solução negociada. As negociações não estão encerradas. Torço por um desfecho positivo.
A emissão do boleto foi um erro da Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade – reconheceu Marchezan. Ele disse que o valor de R$ 179.849,60 é a "precificação inicial da secretaria". O documento deveria integrar o processo que, ao final, será analisado pelo Escritório de Eventos, junto aos pareceres dos órgãos envolvidos no evento:
– Posso garantir que não é esse o valor que a Câmara vai pagar. Na definição das contrapartidas, vai ser levado em conta o interesse público e cultural, como se faz com todos os eventos.
Palco do evento é nova polêmica na área cultural
A repercussão da notícia de que a Feira do Livro talvez tenha de pagar pelo uso do espaço público na realização do evento neste ano significou um novo embate entre a prefeitura e a área cultural. A repercussão do caso foi imediata e várias entidades e personalidades ligadas à área do livro vieram a público para criticar a medida.
Integrante do Conselho Estadual de Cultura e patrono da Feira do Livro em 2003, o escritor e jornalista Walter Galvani enviou ao conselho um comunicado no qual classifica a decisão de uma "atitude monetarista e rasteira", assim como acusou a prefeitura de querer "se beneficiar de uma realização que deu muito certo e imenso prestígio trouxe para nossa capital", porque, "ao invés de apoiar, com isenções e com o trabalho dos seus funcionários, quer se beneficiar de maneira lamentável".
A atual patrona da Feira do Livro, a escritora Valesca de Assis, também deplorou a medida.
– Como patrona, escritora, cidadã, minha reação foi de perplexidade. Nunca se alugou espaços públicos para a Feira. No ano passado, a Feira já precisou se encarregar de varrer a praça, agora isto. Também a prefeitura criou dificuldades ao projeto Adote um Escritor, que, embora tenha passado na Câmara, não foi realizado como de costume. É um conjunto de coisas que só se pode pensar que está sendo tomado para dificultar as coisas para o evento mais tradicional e conhecido de Porto Alegre – declarou, fazendo referência a outros embates recentes da área da cultura com o Executivo.
A Feira do Livro do ano passado teve, em seus primeiros dias, um impasse entre a Câmara e a prefeitura, que afetou o recolhimento de lixo na Praça da Alfândega na primeira semana do evento. No caso do projeto Adote um Escritor, a administração municipal reduziu os recursos destinados à proposta na Feira de 2017, passando de R$ 800 mil para R$ 214 mil divididos entre 98 das 99 escolas da rede municipal. O programa é realizado desde 2002, e suas ações, em uma parceria entre a prefeitura e a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), incluem a compra de livros para as bibliotecas escolares municipais e visitas de alunos à Feira.
Ainda em 2017, a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL), presidente da Frente Parlamentar de Incentivo à Leitura, apresentou a emenda nº 86 ao projeto de lei orçamentária para 2018, destinando R$ 400 mil para o Adote, retirados de investimentos em publicidade. A emenda foi aprovada em 4 de dezembro, com 18 votos favoráveis e 12 contrários, mas, em janeiro deste ano, o prefeito vetou a emenda, afirmando que ela interferiria na publicidade legal obrigatória. O projeto voltou ao Legislativo, e o veto foi derrubado em março. Depois disso, contudo, em 7 de maio, a CRL anunciou que não participará mais do projeto junto à prefeitura depois de dois meses sem conseguir marcar uma audiência com o secretário municipal de Educação, Adriano Naves de Britto. A Secretaria Municipal de Educação, desde então, toca o projeto sozinha.
– Em termos de literatura, Porto Alegre tem duas coisas que eram referência nacional e até internacional. Uma era o Adote um Escritor, e a outra é a Feira, um cartão postal, a maior feira de livros a céu aberto do mundo. Tenho dificuldade de entender que as pessoas tenham intenções ruins em relação às coisas, mas não consigo compreender por que projetos assim tenham de ser tão dificultados por quem deveria incentivá-los, como a prefeitura – criticou Christian David, presidente da Associação Gaúcha de Escritores (Ages).