À primeira vista, o começo do romance Escalpo, do escritor e jornalista Ronaldo Bressane, não é promissor. O protagonista Ian Negromonte é um artista, no caso um quadrinista gaúcho, em desgraça pessoal e profissional: seu mais recente trabalho foi rumorosamente apontado como um plágio e seu casamento acabou depois de uma sucessão de infidelidades da esposa, o que o faz bater perna por São Paulo procurando apartamento e remoendo suas insatisfações: com a inveja e deslealdade dos colegas artistas, com a mulher, etc.
Bressane escreve com uma técnica que não é certinha, e que consegue manter uma raiva e uma vitalidade essenciais a seu estilo, mas essa história é praticamente a de boa parte dos romances brasileiros recentes – com a possível ressalva de que o protagonista não é branco, e sim mestiço, mas isso não chega a fazer diferença alguma no texto.
Mas em determinado momento, após Ian participar de uma manifestação de rua e ser surrado pela polícia, a narrativa volta a um ponto que parecia ter ficado para trás. Ian é procurado por velho chileno chamado Miguel Ángel Flores, um dos donos de apartamento que havia visitado. Flores fugiu do Chile durante a ditadura de Pinochet, deixando para trás dois filhos que teve com duas mulheres diferentes e a quem nunca mais viu. Paraplégico após um acidente, o chileno está mal de saúde e quer encontrar os filhos, mas as pesquisas feitas com a ajuda de advogados e de comissões de direitos humanos deram em nada.
É aí que surge a proposta ao mesmo tempo óbvia e delirante: como em um romance policial clássico de Rex Stout, em que Archie Goodwin era "as pernas" de um gordíssimo e sedentário Nero Wolfe, Flores contrata Ian como um arremedo de detetive em busca de seus filhos, em uma viagem pela América Latina e pelo Brasil que o leva ao encontro de alfarrabistas cegos, militantes políticos e cantores gospels. E é aí que a mistura paradoxalmente desvairada e sóbria de elementos no romance começa a valer a pena.
Há algo de ficção pulp em Escalpo, mas há mais. Há quadrinhos, claro, e um olhar político, mas a referência mais à flor da pele, embora não necessariamente nomeada, é um eco menos radical da atmosfera delirante e suavemente paranoica que José Agrippino de Paula tornou única em sua epopeia PanAmérica. Delírios lisérgicos, mistérios e diálogos cortantes e absurdos fazem de Escalpo, no fim, um panorama bem-urdido em que o todo extrapola a soma das partes.
ESCALPO
Ronaldo Bressane
Editora Reformatório, 248 páginas, R$ 40.