Bob Dylan já mostrou seus dotes de escritor em pelo menos dois livros, mas sua maior contribuição para a literatura não está nas páginas de Tarântula (1971) ou Crônicas – Volume Um (2004). Foi por conta de suas letras que o cantautor americano conquistou a maior honraria que um criador pode sonhar nesse campo, o Nobel de Literatura. Como deixou claro a Academia Sueca ao anunciar o prêmio de 2016, Dylan mereceu a homenagem "por ter criado novos modos de expressão poética no quadro da tradição da música americana".
Os versos que mudaram a história da canção popular daquele país e, por consequência, de todo o mundo, finalmente ganham uma edição para as livrarias brasileiras. A Companhia das Letras lançou Letras (1961 – 1974), primeiro de dois volumes com a íntegra das composições de Bob Dylan, traduzidas pelo premiado escritor e professor Caetano Galindo, que já havia feito trabalho semelhante com a obra de Lou Reed para a mesma editora em 2010.
A pedido da Companhia, Galindo preparou uma tradução sóbria, sem compromisso com rimas. Manter esse estilo foi uma das maiores dificuldades para o tradutor.
– Como a proposta era de uma tradução sem rima e sem metro, destinada à leitura e ao "conteúdo", isso acarretava uma responsabilidade muito grande quanto a esse conteúdo. Desde uma fidelidade semântica bem maior do que a que se pode esperar de uma tradução "poética" até um compromisso com o "tom", o "registro", aquela oralidade sofisticada mas nunca beletrista, aquela cara de conversa que no entanto não nega suas fontes literárias... Encontrar esse equilíbrio é sempre um fio de navalha – escreve Galindo, em entrevista por e-mail.
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As traduções perdem musicalidade e lirismo, mas mantêm o compromisso com o sentido original, e o leitor mais íntimo do idioma inglês pode perceber o brilho do texto de Dylan conferindo os versos no original, já que o volume é bilíngue. O trecho "The highway is for gamblers, better use your sense / Take what you have gathered from coincidence", de It's All Over Now, Baby Blue (1965), por exemplo, foi traduzido criativamente por Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti como "A estrada é pra você, e o jogo é a indecência / Junte tudo que você conseguiu por coincidência", na versão Negro Amor, gravada por Gal Costa em 1977 e pelos Engenheiros do Hawaii em 1999. No livro, Galindo opta por "A estrada é dos jogadores, melhor ter juízo / Pegue o que deduziu da coincidência". A métrica se vai, mas o sentido é restituído – e difere um bocado do proposto por Veloso e Cavalcanti.
– Talvez as letras mais difíceis de traduzir sejam as que eu chamei de "surreais", os "sonhos" ou subterranean homesick blues, nas quais dezenas de referências culturais difíceis de recuperar se juntam a uma voz que nunca para e a um grau de obscuridade bem alto – avalia Galindo.
O livro se estende até o disco Planet Waves, de 1974, documentando uma das fases mais prolíficas de Bob Dylan. São 14 álbuns em 13 anos, além de dezenas de letras adicionais, todas incluídas no volume. Ali estão, por exemplo, discos que fizeram Dylan ser alçado ao posto de líder da canção de protesto americana – que sempre tratou de negar –, como The Freewheelin' Bob Dylan (1963) e The Times They Are A-Changing (1964), e também obras que lhe deram o qualificativo de traidor pelo mesmo movimento, como Bringing It All Back Home (1965) e Highway 61 Revisited (1965).
– Ao traduzir, mudei especialmente a minha noção de quanto Dylan se comprometeu com a "experimentação", com tentar caminhos, abordagens e "pegadas" diferentes, por vezes de um disco para outro. Gostei muito de ver a intensidade com que ele tentou sempre se refundir, se superar – analisa Galindo.
Livros ganham reedições no Brasil
O segundo volume das Letras de Bob Dylan deve ser lançado no início do próximo ano, mas outros livros assinados pelo bardo americano já estão de volta às livrarias. Tarântula e Crônicas – Volume Um, esgotados há anos no Brasil, finalmente ganharam reedições pela Planeta.
Lançado em 2004, Crônicas seria a abertura de uma série de livros autobiográficos de Dylan, mas até hoje é um volume solitário. Os relatos tratam da chegada do músico à Nova York no início dos anos 1960, quando assinou seu primeiro contrato com uma gravadora, documentam o fastio do compositor com os títulos de "príncipe" e "profeta" da contracultura e narram bastidores de composição e estúdio dos álbuns New Morning (1970) e Oh Mercy (1989). Não há fatos significativos que já não tenham sido documentados em outras biografias, mas o livro vale pelas opiniões do autor e por expor sua relação veneranda por seus ídolos e companheiros de ofício. Nesse sentido, o título Chronicles diz muito, embora não tenha um bom correspondente em português – no Brasil, "crônica" é um texto geralmente associado ao cotidiano; já na tradição inglesa, "chronicle" tem relação com a crônica medieval, conhecida por arrolar personagens históricos e seus feitos.
Editado pelo selo Tusquets, Tarântula se aproxima mais – embora nem tanto – da crônica como a conhecemos. Na prosa poética, lançada em 1971, é possível encontrar Dylan refletindo sobre o cotidiano a partir das notícias de jornal ("Você estava naquele carro do metrô quando esfaquearam o menino – você só ficou sentado"), mas há também trechos com diálogos nonsense, poemas e longos parágrafos compostos em livre associação de referências. A nova edição conta com a tradução de Rogério Galindo, irmão de Caetano, e prefácio do romancista português Valter Hugo Mãe, que classifica Tarântula como um "exercício melódico de recuperação de algum esplendor ao jeito de Rimbaud".
LETRAS (1961 – 1974)
De Bob Dylan
Letras, Companhia das Letras, 648 páginas, R$ 89,90.
* Colaborou Karine Dalla Valle
***
COMPARE AS VERSÕES
Leia trechos da tradução de Caetano Galindo e adaptações conhecidas das canções gravadas por músicos brasileiros:
It's All Over Now, Baby Blue, do disco Bringing It All Back Home (1965)
You must leave now, take what you need, you think will last
But whatever you wish to keep, you better grab it fast
Yonder stands your orphan with his gun
Crying like a fire in the sun
Look out the saints are comin' through
And it's all over now, Baby Blue
Negro Amor, versão de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, gravada por Gal Costa em 1977 e pelos Engenheiros do Hawaii em 1999
Vá, se mande, junto tudo que você puder levar
Ande, tudo que parece seu é bom que agarre já
Seu filho feio e louco ficou chorando feito fogo à luz do sol
Os alquimistas já estão no corredor
E não tem mais nada, negro amor
Agora Está Tudo Acabado, Lindinha, tradução de Caetano Galindo
Agora você tem que ir, leve o que quiser, que você acha que dura
Mas o que decidir guardar, melhor segurar firme
A distância se ergue órfã com sua arma
Gritando qual fogueira sob o sol
Olha, os santos vêm nascendo
E agora está tudo acabado, lindinha
***
I Want You, do disco Blonde on Blonde (1966)
The guilty undertaker sighs
The lonesome organ grinder cries
The silver saxophones say I should refuse you
The cracked bells and washed-out horns
Blow into my face with scorn
But it's not that wayI wasn't born to lose you
I want you, I want you
I want you so bad
Honey, I want you
Tanto, versão de Chico Amaral, gravado pelo Skank em 1993
Coveiros gemem tristes ais
E realejos ancestrais juram que
Eu não devia mais querer você
Os sinos e os clarins rachados
Zombando tão desafinados
Querem, eu sei, mas é pecado
Eu te perder
É tanto, é tanto
Se ao menos você soubesse
Te quero tanto
Eu quero você, tradução de Caetano Galindo
O coveiro culpado suspira
Chora o solitário homem do realejo
Os saxofones de prata dizem que eu devia negar você
Os sinos partidos e espinhos encharcados
Sopram no meu rosto com desdém
Mas não é assim
Eu não nasci pra te perder
Eu quero você, eu quero você
Eu te quero tanto
Querida, eu quero você